Francisco Orofino e Carlos Mesters
Segundo o magistério e a Tradição da Igreja
A fidelidade à Igreja, à Tradição e ao Magistério é tão importante para a interpretação da Bíblia quanto a raiz para a árvore. Sem ela, a árvore morre. Mas a raiz deve ficar debaixo do chão. Ela não aparece, nem pode aparecer. Apresentamos aqui dez normas hermenêuticas que, ao longo dos séculos, animaram e orientaram a leitura da Bíblia na Igreja. Elas são como que um resumo dos critérios que devem orientar a leitura e a interpretação da Bíblia. Estas normas foram tiradas, em grande parte, do Documento Conciliar Dei Verbum (DV) [1] e das encíclicas papais sobre a leitura da Bíblia na igreja.
A fé de que a Bíblia é Palavra de Deus é o que mais caracteriza a leitura cristã da Bíblia. É por ser Palavra de Deus que a Bíblia tem aquela autoridade. A Palavra de Deus, porém, não está só na Bíblia. Deus também fala pela vida, pela natureza, pela história (DV 3). A leitura da Palavra escrita da Bíblia ajuda a descobrir a Palavra viva de Deus na vida.
Existe uma ligação entre Criação e Salvação, pois ambos são fruto da Palavra de Deus. “Deus que cria (cf. Jo 1,3) e conserva todas as coisas pelo Verbo, oferece aos homens nas coisas criadas um perene testemunho de si mesmo” (cf. Rom 1,19-20) (DV 3). Santo Agostinho ensina que Deus escreveu dois livros. O primeiro livro é a criação, a natureza, a vida. O segundo livro é a Bíblia, inspirada por Deus para nos “devolver o olhar da contemplação”, para que possamos ler e interpretar melhor o Livro da Vida e da Natureza.
Por ser Palavra de Deus, a Bíblia, quando ”lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita” (DV 12), comunica a luz e a força deste mesmo Espírito aos que a lêem. Por isso, a Palavra de Deus tem força para realizar o que transmite (DV 21).
A linguagem usada por Deus para comunicar-se conosco na Bíblia é em tudo igual à nossa linguagem, menos no erro e na mentira. Por isso ela deve ser interpretada com a ajuda dos mesmos critérios que se usam para interpretar a linguagem humana: crítica textual, crítica literária, pesquisa histórica, etnologia, arqueologia, etc (DV 12; Pio XII 20). Do contrário, caímos no erro do fundamentalismo que tanto mal faz, pois desliga a Bíblia do contexto da realidade humana daquela época, isola o leitor e a leitora da comunidade e da tradição e separa vida e fé. O fundamentalismo foi condenado no documento da Pontifícia Comissão Bíblica [2].
Sob a pressão dos problemas que questionam a fé surgem sempre novos métodos de análise dos textos bíblicos. O Papa João Paulo II, no seu discurso à Pontifícia Comissão Bíblica (1989) reconheceu a legitimidade do uso destes métodos. Ele disse: ”A grande variedade dos métodos pode, por vezes, dar a impressão de uma certa confusão. Mas também tem a vantagem de nos fazer perceber a inesgotável riqueza da Palavra de Deus” [3]. A própria Pontifícia Comissão Bíblica no seu mais recente documento analisa e avalia estes vários métodos [4]. Ao mesmo tempo, é bom ter consciência clara dos limites de cada método.
O povo cristão procura e encontra na Bíblia "o conhecimento de Deus e do homem e o jeito pelo qual o justo e misericordioso Deus trata com os homens" (DV 15). A Leitura Orante faz com que o modo de pensar de Deus, aos poucos, se torne o nosso modo de pensar. Por isso mesmo, ela ajuda a descobrir e quebrar em nós as falsas ideologias, e contribui para que aprendamos a olhar a vida com os olhos de Deus.
Antes de ser um catálogo de verdades, a Bíblia é a revelação da graça e da misericórdia de Deus (DV 2). Ele nos amou primeiro! Para os pobres e oprimidos, esta revelação significa, desde sempre, que Deus se inclina para escutar o seu clamor e estar com eles na sua aflição, para caminhar com eles e libertá-los do cativeiro (Ex 3,7-8; Sl 91,14s).
O objetivo primeiro da Bíblia é ajudar-nos a descobrir na vida esta presença amiga de Deus e experimentar o seu amor libertador. Este é o cerne de toda a revelação expresso no Nome YHWH, Deus-Conosco. A leitura da Bíblia funciona como um colírio que vai limpando os olhos. Como diz Santo Agostinho, ela devolve o olhar da contemplação que nos foi roubado pelo pecado [5] .
Esta revelação e experiência de Deus são fruto, ao mesmo tempo, da graça de Deus e do esforço humano. De um lado, a revelação que Deus faz de si mesmo provoca nossa colaboração e participação e exige observância da Aliança. De outro lado, ela “nos faz participar dos bens divinos que superam inteiramente a capacidade da mente humana” (DV 6). Eficiência e gratuidade, luta e festa, natureza e graça, ambos se misturam na caminhada conflituosa em direção a Deus. Este olhar libertador, nascido de Deus, liberta e abre o sentido da Bíblia.
Para nós cristãos, Jesus é o centro, a plenitude e o objetivo da revelação que Deus vinha fazendo de si desde o Antigo Testamento (DV 2.3.4.15.16.17). “Os livros do Antigo Testamento adquirem e manifestam sua plena significação no Novo Testamento e, por sua vez, o iluminam e explicam” (DV 16). Sem o Antigo Testamento não se entende o Novo, e sem o Novo não se entende o Antigo.
A experiência viva de Jesus na comunidade é a luz nova nos nossos olhos para poder entender todo o sentido do Antigo Testamento (DV 16). Cristo está como que do nosso lado, olhando conosco para o Antigo Testamento, clareando-o com a luz da sua presença. Dizia Santo Agostinho: “Novum in Vetere latet, Vetus in Novo patet”, o que significa “O Novo está escondido no Antigo, o Antigo desabrocha no Novo”.
Tudo isto tem uma atualidade muito grande. Não se trata só de descobrir como os primeiros cristãos souberam encontrar as figuras de Jesus no Antigo Testamento (DV 15). Trata-se sobretudo de fazer hoje o que eles fizeram, a saber: descobrir como o nosso “antigo testamento”, isto é, a nossa história pessoal e comunitária, está sendo empurrada pelo Espírito de Deus para a vida plena em Cristo. A conversão para Cristo tira o véu dos olhos e faz entender o sentido da Bíblia e da vida (2 Cor 3,16).
De um lado, a Bíblia ajuda a entender e a aprofundar aquilo que estamos vivendo em Cristo. De outro lado, nossa vida e nossa prática nos ajudam a entender melhor o sentido cristológico da Escritura. Antigamente, este sentido era chamado de “sentido espiritual”. Isto é, o Espírito nos ajuda a descobrir o sentido que o texto antigo tem para nós hoje. Também era chamado “sentido simbólico”, pois unia (sym-ballo) a vida e a Bíblia.
Existem duas listas de livros inspirados: a lista judaica, que compreende o que nós chamamos o Antigo Testamento, e a lista cristã, que compreende os livros do Antigo e Novo Testamento. Aceitar a lista completa é aceitar a unidade dos dois Testamentos e admitir que uma e mesma economia divina une os dois Testamentos num único projeto de salvação e de libertação, projeto que só se revela plenamente na medida em que o Antigo passa a ser Novo.
Esta passagem do Antigo para o Novo começou no momento da Ressurreição de Jesus e ainda não terminou. A cada momento novos povos, novas pessoas e novos setores da nossa vida pessoal e comunitária vão entrando no “Caminho” (At 9,2; 18,25.26). Esta passagem, páscoa, envolve tudo e todos, pois tudo foi criado por Deus para Cristo (Cl 1,16). Assim, cada pessoa, cada grupo, cada comunidade, povo ou nação tem o seu Antigo Testamento, tem a sua história de salvação e deve fazer a sua passagem do Antigo para o Novo, isto é, deve aprofundar a sua vida até descobrir lá na raiz, a presença amiga e gratuita de Deus, empurrando tudo para a plena vida em Cristo.
A Bíblia com seus dois Testamentos é norma, é cânon, dado por Deus, para ajudar-nos no discernimento e na realização desta nossa páscoa de salvação e de libertação. "Renovar" é fazer com que também hoje nas nossas vidas o Antigo se torne Novo.
Quando nos reunimos em torno da Palavra de Deus, formamos um pequeno santuário ou sacrário, tão santo quanto o sacrário que conserva o Corpo de Cristo. Na Igreja existem o Livro e o Cálice (João XXIII), o santuário da Palavra de Deus e o santuário do Corpo de Deus (DV 21). Os inúmeros pequenos santuários da Palavra de Deus que, assim, se espalham pelo mundo, sobretudo entre os pobres, são as pontas finas e frágeis da raiz que dão força e vigor à árvore da Igreja. Estes pequenos santuários em torno da Palavra de Deus são o lugar, onde a Igreja nasce como a água da sua fonte.
A Bíblia não é, em primeiro lugar, um livro de piedade individual, nem uma cartilha de transformação social, mas é o livro de fé da comunidade, livro de cabeceira. A Palavra de Deus gera a comunidade. Interpretar a Palavra de Deus não é a atividade individual do exegeta que estudou um pouco mais que os outros, mas é e deve ser uma atividade comunitária em que todos participam, cada um a seu modo com os seus dons, inclusive o exegeta.
Deste modo, surge e cresce o sentido comum, aceito e partilhado por todos. É o “sensus ecclesiae”, o “sensus fidelium”, o “sentido de fé da Igreja”, com o qual todos se comprometem como se fosse com o próprio Deus. Este “sentido de fé da Igreja”, quando partilhado por todos nos Concílios Ecumênicos e expresso pelo Magistério, cria o quadro de referência dentro do qual se deve ler e interpretar a Bíblia.
Não basta a razão para poder captar todo o sentido que a Bíblia tem para a nossa vida. É necessário levar em conta também os critérios da fé e ler a Bíblia “naquele mesmo Espírito em que foi escrito” (DV 12). Os critérios da fé são três: "Atender com diligência ao conteúdo e à unidade de toda a escritura, levada em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé" (DV 12). Ou seja, a interpretação cristã da Bíblia deve levar em conta: (1) a "unidade de toda a Escritura", isto é, a Visão Global da Bíblia; (2) a “tradição viva da Igreja” dentro da qual a Bíblia foi gerada e transmitida; (3) a “analogia da fé”, isto é, a vida da Igreja dentro da qual e em função da qual a Bíblia é lida e interpretada. Os três têm o mesmo objetivo: descobrir o sentido pleno da Escritura, impedir que o seu uso seja manipulado, e evitar que o texto seja isolado do contexto histórico e da tradição eclesial que o geraram e transmitiram. Vejamos cada um dos três:
Os critérios da realidade situam-se em dois níveis: a realidade da época em que foi escrita a Bíblia, e a realidade do povo que hoje lê a Bíblia. Ambas têm as suas exigências a serem levadas em conta na interpretação.
Assim, usando este duplo critério da realidade, descobrimos o chão comum humano que une o povo de Deus de hoje e o povo de Deus da Bíblia numa mesma situação diante de Deus, e cria assim a abertura para se perceber o alcance do texto para a nossa realidade.
"A Sagrada Escritura deve ser lida naquele mesmo Espírito em que foi escrita" (DV 12). Pois a descoberta do sentido não depende só da força da inteligência, mas também da ação do Espírito que só se consegue pela oração (Lc 11,13). Por isso, a leitura da Bíblia “deve ser acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça um colóquio entre Deus e o ser humano pois com Ele falamos quando rezamos; ouvimo-lo quando lemos os divinos oráculos" (DV 25). O recente documento da Pontifícia Comissão Bíblica sobre a Interpretação da Bíblia na Igreja dá uma atenção muito grande à Leitura Orante da mesma [10]
Neste ponto, a leitura do povo das Comunidades Eclesiais de Base nos dá uma lição. Ele envolve a leitura pela oração e pelo canto e cria, assim, um ambiente comunitário de fé, onde o Espírito pode atuar, agir livremente e revelar o sentido que o texto antigo tem para nós hoje.
Isto significa que se deve criar um ambiente de silêncio, de escuta e de partilha e, ao mesmo tempo, ter uma preocupação constante em aprofundar a vida do povo com seus problemas e permitir que as alegrias e tristezas do povo estejam em nossa mente e no nosso coração.
A interpretação da Bíblia não tem finalidade em si mesma, mas está a serviço da vida e da missão da Igreja. A missão principal é a evangelização, o anúncio da Boa Nova de Deus (Mc 1,14). "Na Igreja, todos os métodos de interpretação devem estar, direta ou indiretamente, a serviço da evangelização" (João Paulo II) [11].
Para que isto possa acontecer, são necessárias duas coisas: 1. Durante todo o tempo da leitura da Bíblia ter presente a realidade do povo a ser evangelizado. 2. Para que a comunidade seja realmente evangelizadora, ela deve permitir que a Palavra a transforme em amostra viva do Evangelho que anuncia. Toda a nossa vida deve ser alimentada e permeada pela Palavra de Deus a ponto de “iluminar a mente, fortalecer a vontade e inflamar o coração” (DV 23).
[1] Constituição Dogmática DEI VERBUM, Documentos Pontifícios, nº 154, Vozes Petrópolis ,1966.
[2] Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja, Documentos Pontifícios, nº 260, Vozes Petrópolis, 1994
[3] João Paulo II, Alocução aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica, Sobre os métodos usados na interpretação da Bíblia, 7 de abril de 1989. Tradução do texto oficial francês, publicado no Osservatore Romano de 8 de abril de 1989.
[4] Pontifícia Comissão Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja, Documentos Pontifícios, nº 260, Vozes Petrópolis, 1994, páginas 29 a 65.
[5] A expressão é de Santo Agostinho. Cf H.de Lubac, Esegesi Medievale, I quattro sensi della Scrittura, Ed Paoline, Roma 1962, pp.220-221.
[6] Paulo VI, Alocução aos professores da Sagrada Escritura, Sobre a obra da Igreja para a Interpretação da Palavra de Deus, 25 de setembro de 1970, em: Como ler e entender a Bíblia hoje, Textos oficiais da Igreja, Vozes Petrópolis, 1982, p. 12.
[7] Pio XII, Encíclica Divino Afflante Spiritu, Documentos Pontifícios, Nº 27, Vozes, Petrópolis, 1964, nº 20, p.22.
[8] Paulo VI, ibid., p.11.
[9] Paulo VI, Alocução aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica, Sobre a importância dos estudos bíblicos, 14 de março de 1974, em: Como ler e entender a Bíblia Hoje, Textos oificiais da Igreja, Vozes, Petrópolis, 1982, p15.
[10] o.c., pp.112-113.
[11] João Paulo II, Alocução aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica, Sobre os métodos usados na interpretação da Bíblia, 7 de abril de 1989. Tradução do texto oficial francês, publicado no Osservatore Romano de 8 de abril de 1989.