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11/08/2020 Emerson Sbardelotti Edição 3927 A cruz de Cristo nas cruzes todas. Profecia e poesia em Dom Pedro Casaldáliga
F/ PUC - Campinas
" Quando perguntado, o que fica hoje da Teologia da Libertação, ele respondeu de imediato: “ficam os pobres e fica Deus”!"

No dia 30 de julho de 1968, o padre Pedro Casaldáliga, missionário claretiano, chegou à região de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, Brasil, para nunca mais voltar para Balsareny, na Catalunha, Espanha. O maio francês e a Primavera de Praga faziam o mundo fervilhar, na América Latina e no Caribe, o processo de aggiornamento proposto por São João XXIII ecoa na Conferência de Medellín (1968, Colômbia), que foi a práxis do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965, Vaticano) por estas terras continentais. O Brasil que o padre Casaldáliga conheceu, era um país pobre, envolvido por uma sangrenta ditadura militar. Um país onde sobrava a injustiça social, e por causa disso, germinava a profecia.

 No dia 16 de fevereiro de 2020, Dom Pedro Casaldáliga completou 92 anos de vida, 52 anos destes vividos na Prelazia de São Félix do Araguaia, onde foi administrador e primeiro bispo (1971-2005). Enfrentando ameaças de morte, convivendo com a morte de amigos, de posseiros, de camponeses, de peões, de indígenas, de lideranças que lutavam por dignidade, reforma agrária, direitos humanos.

 Em 23 de outubro de 1971, foi sagrado bispo e como primeiro ato publicou uma carta pastoral intitulada Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, onde denunciou a situação iniqua da estrutura agrária brasileira, colocando a Prelazia e todas as suas forças em defesa dos lavradores e indígenas; posição mantida até os dias atuais. Teve como base teológica e espiritual o fato de que sua vida missionária foi uma convicção de que Deus não está separado da vida de seu povo, de sua criação. Defensor e propagador da Teologia da Libertação e da Espiritualidade da Libertação, adotou como lema para sua atividade pastoral, até o fim: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar

 No Brasil ajudou a fundar o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em 1972 e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 1975. Escreveu junto com o poeta Pedro Tierra: A Missa da Terra sem Males (com música de Martín Coplas, 1980); A Missa dos Quilombos (com música de Milton Nascimento, 1981); ambas proibidas pela Santa Sé.

 Nos dias 13, 20 e 27 de dezembro de 2014, a TV Brasil em parceria com a televisão espanhola TVE e a catalã TVC apresentou um documentário em 3 capítulos de 52 minutos, intitulado Descalço sobre a terra vermelha. A película foi premiada na Ásia, no Festival de Seul, e pelo New York Internacional TV & Film Awards. A minissérie é baseada na obra homônima de autoria do escritor Francesc Escribano.

 Pedro, como gostava de ser chamado, assumiu em sua vida, em seu magistério, na sua poesia, os 28 itens dos dois Pactos das Catacumbas: da Igreja Servidora e Pobre (1965); pela Casa Comum por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana (2019). Assim, nos ensinou que é preciso superar de vez por todas as tentações de um retorno à cristandade; quanto é necessário viver dentro de uma Igreja plural e pobre, de opção pelos pobres, uma eclesiologia de participação, de libertação, de diaconia, de colegialidade, de profecia, de martírio. Uma Igreja explicitamente ecumênica, de fé e política, de integração de Nossa América, reivindicando os plenos direitos de todas as pessoas, superando os fechamentos advindos de uma eclesiologia equivocada.

 A Opção pelos Pobres que havia sido uma opção de uma minoria clandestina capitaneada por D. Helder Camara no Vaticano II, na Conferência de Medellín esta opção se tornou a opção de toda uma história da Igreja no continente latino-americano, pois Medellín foi mais avançada que o Vaticano II. O resultado dessa ousadia profética provocou medo em Roma: medo dos que estiveram em Medellín. Há o medo de assumir as causas do Reino nas causas da vida. Dentro deste espírito, Pedro fez o poema Deus nos livre:

 Deus no livre de leigos com batina no espírito.

Deus nos livre de padres sem Espírito Santo.

Deus nos livre de espíritos sem a carne da vida.

 Pedro Casaldáliga, foi um bispo de muitas lutas e de muitas causas; elas valiam e valem mais do que sua vida, que se tornaram mundialmente conhecidas pela altura dos seus gritos clamando justiça e de seus escritos a favor dos últimos, dos excluídos, dos marginalizados da sociedade. Um poeta, um profeta, um homem de fé, de esperança, de sonhos e utopias, como bem diz o poema A utopia é possível:

 A utopia é possível se nós optamos por ela, vencendo o passado escravo,

forjando o duro presente, forçando o novo amanhã.

 Através da profecia e da poesia de Pedro Casaldáliga se aprende que há possibilidade de ser uma Igreja Pobre, de ser uma Igreja Povo de Deus, pois a humanidade inteira é povo de Deus. Na profecia e na poesia de Pedro encontram-se os pobres do Evangelho. E a primeira missão de um bispo é ser profeta; e profeta é aquele que diz a verdade diante de todo o povo!

 Ele mesmo vai dizer em seu diário, de fevereiro de 1984, que ser amável com todos é mais fácil, mais cômodo, que ser honestamente profético com todos. Amar é também incomodar

 Para Pedro, o profeta é aquele que grita com os olhos.

 A poesia é uma das facetas mais marcantes de Casaldáliga; lendo seus poemas; entramos na memória, no ideário e no compromisso de Pedro. Descobrimos a riqueza de enfrentar ameaças de mortes, de dores e inúmeras tragédias, mantendo viva a utopia e a fiel esperança. Nunca serão esquecidos pois foram plantados bem fundo nos corações de todas as pessoas que também assumiram suas causas. A vida pede passagem e nas causas do Reino a profecia e a poesia de Pedro Casaldáliga se tornam um legado político, social, cultural e religioso.

 É mentira afirmar que a Teologia da Libertação se inspira no marxismo! A Teologia da Libertação se inspira no Evangelho e na pobreza. Evidentemente, não só a TdL mas a Igreja como um todo utilizou categorias marxistas para entender melhor o capitalismo. O capitalismo nunca reconhecerá que sua proposta é antidemocrática.

 Pedro sabia que em relação à TdL, ainda hoje, há desconfianças, incompreensões, inverdades, alguns medos que não desaparecem, como por exemplo: o medo de que as pessoas que a defendem e praticam se tornem marxistas, comunistas, materialistas e ateus. Temem que haja uma descentralização de Jesus de Nazaré. Acreditam que se politiza tudo, a fé e o compromisso evangélico. Com os olhos cheios de esperança, vi Pedro dizer assim: “Para mim, o que acontece é que nos temem porque não nos conhecem bem. Não conhecem o processo que nos levou à Teologia da Libertação e, por isso, dizem, com uma certa superficialidade, que nos inspiramos no marxismo. Isso me indigna, porque a Teologia da Libertação se inspira no Evangelho e no clamor e no grito dos pobres”.

 Quando perguntado, o que fica hoje da Teologia da Libertação, ele respondeu de imediato: “ficam os pobres e fica Deus”!

 Conheci Pedro Casaldáliga em 1996, durante o Congresso Eucarístico Nacional, que aconteceu na Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo, ele ficou responsável pelo Ato Penitencial, que aconteceu pelas ruas da ilha de Vitória até a Praça do Papa onde acontecia o evento. Até hoje me emociono ao relembrar de Pedro em cima do carro de som alimentando nossos sonhos e utopias com palavras que fortaleceram meus ideais até os dias atuais. Essas coisas marcam e ficam.

 Em 2005 apresentou meu primeiro livro sobre mística e espiritualidade: “Entendo que o mistério é sobretudo o grande mistério do Deus de Jesus, amando-nos, nos acolhendo, nos perdoando, nos salvando. O Deus presente em cada coração, em toda a humana História, no misterioso Universo inteiro. E entendo que o sopro é sobretudo o próprio Espírito desse Deus, alentando em nossas vidas, empurrando a caminhada. O desfio está, para cada um e cada uma de nós, e bem particularmente para a juventude toda, se abrir a esse mistério, e se deixar levar por esse sopro pentecostal.

 Desde então, todos os livros que escrevi, fiz questão de lhe enviar, e sempre me escrevia ou pedia alguém da equipe que cuidava dele me responder.

 No último que lhe enviei me respondeu assim: “Querido Emerson, obrigado pelo livro que me enviaste. O tema é muito procurado, e você tem uma missão especial. Seguimos unidos na caminhada e a consigna é: Tudo é Graça, Tudo é Páscoa, Tudo é Reino. Um forte abraço”.

 Eu escrevi muitas cartas para Pedro; cartas que devem estar no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Por conta da quantidade de páginas e assuntos sérios e urgentes, o que levava o Pedro a rir com a minha impaciência com as soluções dos problemas que não vinham, e continuam não vindo, ele me colocou um apelido: “Divino Impaciente”. Na passagem de 2001 para 2002 recebi um presente de Pedro que muito me comoveu: um anel de tucum, o qual utilizo até o momento em que escrevo este artigo; penso que não irei usá-lo mais, pois o colocarei no pequeno altar que tenho no meu quarto entre as imagens de Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora da Conceição Aparecida e São Francisco de Assis. Colocarei no dedo um outro que ganhei do nosso amigo em comum: Leonardo Boff.

 Muitas são as lágrimas que rolam pelo meu rosto no momento em que escrevo estas linhas. Lembro-me da última vez que estivemos juntos na Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em Ribeirão Cascalheira, em 2016. A equipe cuidava dele em sua cadeira de rodas, e fiquei de longe olhando para o meu amigo, quando ele me reconheceu...não dissemos nenhuma palavra, nossos olhares se cruzaram e tudo que havia para ser dito, os beijos e os abraços, foram dados. Foi a última vez que o vi. 

 Me alegrei ao ver o nome de Pedro na Carta ao Povo de Deus, último presente à Igreja dos Pobres que tanto defendeu e amou. É claro que ele estaria ali. Esse é o Pedro, sempre unido a quem defende a vida.

 E hoje, prestando esta homenagem a este amigo e irmão, me lembrei deste pequeno poema: “E ao final do caminho me dirão: - E tu, viveste? Amaste? Eu sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes”! Com imensa saudade posso dizer com alegria que fui um dos nomes que Pedro tinha no coração, e agradeço a ele por isso.

 Ao final de sua Carta Circular de 2002, intitulada: O mundo tornou a começar, ele escreveu de próprio punho para mim, algo que caiu como uma luva, neste dia 08 de agosto de 2020, quando no Brasil chegamos a 100 mil mortos, quando também perdemos a grande atriz e Mãe de Santo Chica Xavier, um dia que fiquei em silêncio, pensando o que iria escrever e fui buscar estas palavras de Pedro que agora partilho com vocês: “Emerson, irmão: os nossos mortos vivem na Casa do Pai. Para lá vamos! Um forte abraço e força na caminhada”!

 Iremos nos encontrar de novo meu amigo e irmão...até lá...continuarei lutando e defendendo a vida nas causas do Reino, como você me ensinou. Muito obrigado por tudo...não consigo escrever mais nada...

 Abreijos com Fraternura Pedro Casaldáliga.

 PS.: Instintivamente fiz uma poesia em sua homenagem no dia em que soube que ele não estava tão bem de saúde, enviei para o amigo Chico Machado, para quem sabe, pudesse mostrar para Pedro quando retornasse...

 TUDO É PÁSCOA

 Nas causas do Reino, Nas causas da Vida, Tudo é Páscoa

 Caminhar é preciso, Lutar é necessário, Tudo é Páscoa

 Morrer pelo Povo, Semente do novo, Tudo é Páscoa

 Ser misericórdia, Viver fraternura, Tudo é Páscoa

 Amar com os olhos, Despedida com lágrimas, Tudo é Páscoa 

  

Emerson Sbardelotti - Simplex agricola ego sum in regnum vitae.

Fonte: Amerindia

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