Formação Bíblia
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23/04/2020 Frei Carlos Mesters e Francisco Orofino Edição 3923 A Igreja é a “Casa da Palavra”
F/ Cebs continental
"As Comunidades Eclesiais de Base, os Círculos Bíblicos, as muitas celebrações da Palavra são as pequenas Casas da Palavra"

Frei Carlos Mesters e Francisco Orofino

 O primeiro livro de Deus que traz para nós a Palavra de Deus é a Criação, o universo, a natureza, a vida, tudo que acontece. Foi falando que Deus enfrentou o terrível caos da morte, feita de trevas, águas e deserto. “A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas” (Gn 1,2). Deus disse: Luz! E a luz começou a existir. A Luz é uma Palavra de Deus! A Palavra de Deus venceu as trevas da morte.

Deus disse: "Que exista um firmamento no meio das águas para separar águas de águas!" Deus fez o firmamento para separar as águas que estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento. E assim se fez” (Gn 1,6-7). A palavra de Deus venceu as águas que matam e as organizou a favor da vida.

Deus disse: "Que a terra produza relva, ervas que produzam semente, e árvores que deem frutos sobre a terra, frutos que contenham semente, cada uma segundo a sua espécie". E assim se fez” (Gn 1,11). Gritou o nome das plantas, e a Palavra venceu o deserto que mata e fez aparecer o verde e as plantas.

Estando pronta a casa, Deus criou o ser humano o morador da casa para tomar conta de tudo: “Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra". E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher.  E Deus os abençoou e lhes disse: "Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra" (Gn 1,26-29).

É neste primeiro livro das criaturas que a Palavra de Deus nos interpela, como diz tão bem o salmo: “O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia passa a mensagem para outro dia, a noite a sussurra para a outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem” (Sl 19,2-5). Mas o fechamento sobre nós mesmos (Adão e Eva) nos fez esquecer nossa origem e já não percebemos mais a Palavra de Deus na Criação e na vida. Só ficou a saudade. (Para maior aprofundamento da relação entre Palavra-Criação, ver o segundo capítulo da Laudato Sì).

A Palavra de Deus registrada na Bíblia, o segundo livro de Deus, tem uma dupla finalidade: Ela quer acordar dentro de nós a saudade que ficou da Palavra criadora que está em todos nós. Como dizia Santo Agostinho: “Tu nos fizeste para ti e o nosso coração estará irrequieto até que não descanse em ti”. Ela quer ajudar-nos a redescobrir a Palavra de Deus na natureza, na vida, nos fatos, nas pessoas, em tudo que nos acontece e assim fazer com que a Criação se torne, novamente, uma grande Teofania, a Casa da Palavra de Deus.

As Comunidades Eclesiais de Base, os Círculos Bíblicos, as muitas celebrações da Palavra são as pequenas “Casas da Palavra”. A Igreja como um todo, com todas estas pequenas e grandes células que a mantém em vida e a fazem crescer cada vez mais, é a Casa da Palavra onde já aparece aos olhos de todos o sonho que Deus tinha em mente quando nos criou à sua imagem e semelhança: casa acolhedora, aberta para todos e todas, onde o Espírito de Jesus já começa a realizar a sua promessa: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (João 101,10).

 

  1. A Leitura da Bíblia nas Comunidades Eclesiais de Base

No século passado, o método “Ver-Julgar-Agir”, usado durante muitos anos pela Ação Católica (JOC, JEC, JAC, JUC), teve uma influência muito grande no jeito de o povo das comunidades ler a Bíblia e redescobrir a Palavra de Deus na vida. Neste método, procura-se, primeiro, ver a realidade, a situação do povo. Em seguida, com a ajuda da Bíblia, procura-se julgar ou iluminar esta situação. Assim, a fala ou a revelação de Deus vem dos fatos iluminados pela Bíblia. E são estes fatos, enquanto iluminados pela Palavra de Deus, que motivam as pessoas a agir de acordo com a vontade de Deus e a celebrar a sua presença no meio de nós.

Nos Círculos Bíblicos, ao ler a Bíblia, o povo tem nos olhos os problemas da sua vida. A Bíblia torna-se para eles o espelho daquilo que eles mesmos vivem. Estabelece-se assim uma ligação em profundidade entre Bíblia e Vida. A resposta mais frequente que se ouve após a leitura e a reflexão sobre o texto bíblico é esta: “É que nem hoje!” A partir disso, os pobres fazem a grande descoberta: "Se no passado Deus esteve com aquele povo da Bíblia e escutava o seu clamor, então também hoje Deus está conosco nesta luta que nós fazemos para nos libertar, e Ele também escuta o nosso clamor!" Assim nasce uma nova experiência de Deus na vida, um novo olhar, que se torna o critério mais determinante da leitura que o povo faz da Bíblia e que menos aparece nas suas interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo, mas é com ele que enxergamos todas as coisas. 

Esta é também a certeza central que percorre a própria Bíblia, de ponta a ponta: Deus está conosco! Ele está no meio de nós! Este é o significado do nome YHWH com o qual o próprio Deus se revelou a Moisés (Ex 3,7-15). O nome YHWH, Yahweh ou Javé, aparece mais de 6000 vezes na bíblia, sem falar dos nomes que terminam em - ia ou – ias:  Isaías, Jeremias, Zacarias, Malaquias, etc. Estes nomes exprimem o desejo dos pais de darem aos filhos um nome que os levasse a lembrar sempre o nome de Deus.

Na leitura que o povo faz da Bíblia, a Bíblia é vista como nosso livro, "escrito para nós que tocamos o fim dos tempos" (1Cor 10,11). Ela se faz presente na vida não como um livro que impõe uma doutrina, mas como uma Boa Nova que nos revela a presença de Deus na vida. O objetivo principal da leitura que o povo faz da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim, com a ajuda da Bíblia, interpretar a vida e descobrir na vida os sinais da presença de Deus. Os que participam dos círculos bíblicos, eles mesmos se encarregam, como a Samaritana, de divulgar esta Boa Notícia e de atrair outras pessoas para participar. “Venham ver um homem que me contou toda a minha vida!” (Jo 4,29).

Através de cânticos, orações e celebrações cria-se um ambiente fraterno de fé. Cria-se o que antigamente se chamava o contexto do Espírito, que ajuda o povo a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição do exegeta, mas também e sobretudo todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo em grupo; leitura pessoal e comunitária; teatro e celebrações; orações e procissões; a própria vida na comunidade e em casa. O sentido que o povo descobre na Bíblia não é só uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também e sobretudo um sentir, uma consolação (Rm 15,4), um conforto que é sentido e vivenciado, e que “faz arder coração” (Lc 24,32).

O sujeito da interpretação não é o clero nem o exegeta, mas sim a própria comunidade. Aqui está a raiz daquilo que chamamos o “sensus ecclesiae”. Aqui aparecem a riqueza da criatividade do povo e a amplidão das intuições da fé que vão nascendo. Os que participam dos grupos bíblicos sentem-se como participantes ativos, responsáveis pela caminhada da sua Comunidade. Esta dimensão comunitária ou eclesial da leitura popular é um elemento constitutivo da leitura e interpretação da Bíblia. Mesmo quando a pessoa estuda ou lê sozinha a Bíblia, ela está sempre lendo o livro da sua comunidade.

 

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