Falar com Deus, participar de uma religião, celebrar rituais “sagrados”, usar indumentárias religiosas, cumprir alguns preceitos legais, etc. tudo isso são expressões externas da fé. Um modo visível de “mostrar a fé”. Mas se essas expressões religiosas não se traduzem em atitude de amor e compromisso ético para com o outro, tornam-se palavras e gestos vazios, sem vida, sem sentido. O próprio Jesus já alertava os seus discípulos para o perigo de uma fantasia espiritual, ou seja, de uma fé desvinculada da caridade: “nem todo o que me diz: ‘Senhor! Senhor!’entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mt 7, 21).
A fé cristã deve ser mostrada pelas abras da fé. Porque devido à encarnação da Palavra de Deus e da sua opção pelos pobres, excluídos e marginalizados, a fé cristã tem necessariamente um desdobramento ético. É preciso coragem para “tocar a carne sofredora de Cristo no outro”, do contrário, teremos um falso discurso sobre Deus. Como nos alerta a Carta de São Tiago: “Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta” (Tg 2, 26). Noutras palavras, a práxis da vida à fé.
Ética e religião
Num contexto de crise de sentido e do anúncio pós-moderno da substituição da ética pela poética, a intriga entre ética e religião torna-se cada vez mais relevante. Não que tenhamos que passar da ética secular à ética teológica, como se a responsabilidade pelo outro fosse uma espécie de trampolim para Deus e se, por outro lado, Deus fosse reduzido à ética como religião.
A intriga entre ética e religião se encontra confirmada na sabedoria bíblica que apresenta um Deus kenótico que se humilha para “estar junto com o contrito e o humilde” (Is 57,15), que se manifesta no mundo por sua aliança com os excluídos. Um Deus que tem “entranhas de misericórdia” (Os 11,8), que se deixa afectar pela dor e sofrimento do estrangeiro, da viúva e do órfão; um Deus que se deixa “alterar” pela nossa humanidade, que se preocupa com o sofrimento de seu povo, vê sua miséria, ouve seu grito por justiça, conhece suas angústias e desce para libertá-lo (cf. Ex 3,7-8). Enfim, um Deus-amor que se expõe para se autocomunicar à humanidade o seu amor. Portanto, não podemos renunciar à ética como responsabilidade pelo outro, principalmente pelos pobres e injustiçados se quisermos permanecer fiéis à fé que professamos.
Trata-se de compreender a religião como lugar do viver-para-o-outro na responsabilidade ética. Isso não significa que Deus seja colocado como fundamento da ética. Pois a palavra “Deus” aparece no regime da ética não porque Deus é fundamento, mas porque, como “ileidade” ou enigma que se passa na responsabilidade, o homem-profeta obedece à voz de Deus, na voz do rosto. Como afirma Levinas, “o ‘rosto’, em sua nudez, é a fragilidade de um ser único exposto à morte, mas ao mesmo tempo é o enunciado de um imperativo que me obriga a não deixá-lo só. Essa obrigação é a primeira palavra de Deus. A teologia começa para mim no rosto do próximo. A divindade de Deus atua no humano. Deus desce no ‘rosto’ do outro.”
Tocar as chagas de Cristo na “miséria” do outro
Penso que o nosso maior desafio, hoje, não é a negação de Deus, nem o ateísmo, mas a indiferença e a insensibilidade em relação ao outro. A cultura atual não deixou de acreditar em Deus, ainda sabemos quem é Deus, até elaboramos longos discursos sobre Deus, mas esquecemos quem é o nosso próximo. Quantas vezes “sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (EG, n.270).
Quando falamos de uma Igreja comprometida com a causa dos pobres, dos negros, dos índios, da mulher marginalizada e de tantas outras minorias desrespeitadas em seus direitos e feridas em sua dignidade, muitos nos acusam de comunistas, marxistas, etc. Mas, então Jesus também foi comunista, pois foi Ele o primeiro a se colocar ao lado dos pobres, dos injustiçados (cf. Lc 4, 16-21), convidando-os a experimentar a sua consolação. “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardo, e eu vos darei descanso” (Mt 11,28).
Neste sentido, falar de justiça social, cultivar uma fé profética não é defender ideologias, e sim vivenciar a mística do seguimento a Jesus Cristo, o crucificado-ressuscitado, que se fez solidário com os pobres e sofredores. Como afirma o documento de Puebla (n. 28), “vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, cuja gravidade é maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de mudar.”
Superar, pois, a “globalização da indiferença”, tocar as chagas de Cristo nos pobres e injustiçados, assumir a nossa responsabilidade pelo outro como guardas de nossos irmãos e irmãs (cf. Gn 4, 9), eis a nossa grande missão no mundo. Pois encontrar Deus no serviço gratuito ao outro, apesar de manter a ambiguidade que é própria das obras (um ateu também é capaz de amar gratuitamente e de viver eticamente), revela a essência da espiritualidade cristã que professa um Deus que, na sua transcendência, “passa” e “se passa” pela relação ética sem se deixar tematizar pela consciência.
Mostrar a fé no silêncio das obras
Numa sociedade individualista, que supervaloriza o dinheiro e o consumo, que cada vez mais vai perdendo o senso de responsabilidade fraterna; viver a fé como justiça social, na solidariedade aos “caídos à beira do caminho” (cf. Lc 10, 25-37), torna-se um imperativo inegociável. É preciso mostrar a fé no silêncio das obras. Por que muitas vezes queremos servir a Deus sem, no entanto, abandonar o culto ao dinheiro. Nas palavras de São Basílio: “Possuis muitas riquezas, mas qual sua origem? Preferes desfrutar sozinho delas que socorrer aos necessitados. Isto é claríssimo. Na medida em que aumentam tuas riquezas diminui tua misericórdia. Se amares teu próximo, há muito tempo já te haverias desprendido de tanta riqueza. Mas teu dinheiro está mais colado a ti que os membros de teu próprio corpo e te dói muito mais desprender-se do teu dinheiro que cortar teus membros mais importantes. Os fatos estão aí... Se tivesses partilhado tuas riquezas não seria doloroso afastar-se delas (...). Em que irás empregar tuas riquezas? O diabo se encarrega de dar aos ricos bons pretextos para gastar, de forma que se busca o inútil como necessário, e nada lhes basta para saciar suas necessidades imaginárias.”
Há quem pense que fé e vida, religião e ética são coisas distintas ou mesmo antagônicas e que a religião tem que ver tão somente com o espiritual, com a moral privada e que não se deve envolver com a coisa pública. Surge, pois, um tipo de religião intimista, individualista, sem nenhuma implicação na vida da sociedade. Porém, como nos lembra o Concílio Vaticano II, “a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas atividades” (Gaudium et Spes, n. 34). Noutras palavras, nossa fé nos obriga a viver a justiça e a misericórdia como responsabilidade ética pelo outro.
Neste sentido, faz-se necessário abrir novos horizontes de significação do que vem a ser a religião ou mesmo a fé cristã. Pois se se perde de vista a perspectiva da justiça como promoção do outro, como instrumento da paz, a fim de que o homem possa ser um-para-o-outro, como guardião-de-seu-irmão, como um-responsável-pelo-outro, etc. a fé torna-se vazia de sentido e a palavra Deus se transforma em “ídolo” sem nenhuma eficácia em nossa existência. Pois a mística não é posterior à ética, mas a ética é o lugar mesmo da mística, do discurso sobre Deus. É na ética como responsabilidade pelo outro, que a palavra “Deus” é pronunciada com sentido.
* Licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, com especialização em formação para Seminários e Casa de Formação. Mora atualmente na paróquia São Bernardo, Belo Horizonte - MG.