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27/03/2019 Alexandre Kalache Edição 3908 Brasil envelhece em meio ao caos Em 30 anos, seremos um país tão longevo como o Japão de hoje, mas a falta de políticas para a população idosa pode transformar este fato num inferno.
Foto: E-konomista

Envelhecendo é gerúndio, porque ninguém envelhece de repente. E é nas condições de vida em que a pessoa vive, trabalha, se diverte, se locomove, que os anos de vida vão sendo somados, diz Alexandre Kalache, uma referência internacional quando o assunto é envelhecimento e longevidade. Durante os 34 anos em que ficou afastado do Brasil, ele foi diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS. Desde 2016, voltou a morar no Brasil. Presidente do Centro Internacional de Longevidade do Brasil, ele defende o fortalecimento do SUS e alerta que o país tem até cinco anos para criar uma política de sustentabilidade do envelhecimento. “Depois disso a janela de oportunidade pode se fechar.”

 

Impactos do envelhecimento

Os países desenvolvidos primeiro enriqueceram para depois envelhecerem; os países em desenvolvimento vão envelhecer na pobreza. O desafio é muito maior em um tempo mais rápido.

Na França, foram necessários 145 anos para dobrar a proporção de idosos de 10% para 20%, de 1845 a 1990. Era um dos países mais ricos e por seis gerações foi envelhecendo com recursos para desenvolver políticas em resposta a esse fenômeno. O Brasil vai fazer essa transição em uma geração, em apenas 19 anos. Será um envelhecimento extremamente rápido.

Em 2050, seremos tão envelhecidos quanto o Japão de hoje, que é o país mais velho do mundo. Só que eles estão preocupados com o envelhecimento: têm centros de excelência, fazem pesquisas, desenvolvem políticas, preparam quadros e treinam profissionais. Nós estamos envelhecendo na cegueira, sem preparo. A população salta de 14% com mais de 60 anos para 31% daqui a 30 anos. A população idosa do Brasil hoje chega a 30 milhões. Em 2050 vamos ter 64 milhões.

 

Hoje adulto, amanhã idoso...

Ele é uma pessoa que tem um ensino público péssimo, que não consegue emprego digno para pagar uma seguridade social que o sustente daqui a 30 anos. E tudo em um contexto de trabalho formal precário, de ensino público que está piorando, e ainda há o congelamento dos gastos sociais, que piora tudo.

A saúde é criada no contexto da vida cotidiana, onde a pessoa trabalha, que educação recebe, que transporte utiliza, onde se diverte, ama, convive. Quando isso falha, não tem mais política de saúde.

O envelhecimento tem de ser entendido na perspectiva do curso de vida. Ninguém acorda de repente velho. E as pessoas aos 65, 85 ou 20 são o produto dos anos vividos. Para envelhecer bem é preciso juntar quatro capitais: vital, da saúde, do conhecimento e social. Só que a maior parte dos brasileiros chega muito mal nessa velhice, desamparada e com uma pensão ruim. Não tem segurança alimentar e habitacional. Tudo isso faz parte de envelhecer na pobreza, na miséria, em um país muito desigual. Esse é o contexto do curso de vida de quem está hoje envelhecendo no Brasil. Não sei como alguém pode culpar a pessoa que chegou mal à velhice e dizer que ela não se cuidou, que não é resiliente e que a culpa é dela pelo seu estado de saúde.

 

Medicina para idosos?

O currículo [das faculdades de medicina] está adequado para um país jovem e ensina mais sobre saúde materno-infantil. O atlas de anatomia mostra um corpo jovem do sexo masculino no apogeu físico de seus 25 anos, com todos os nervos, veias, músculos, tudo perfeito. Lindo. O médico verá outro corpo. Não vai encontrar o baço de uma mulher obesa de 88 anos, nem acertar a dose de medicamentos, que é diferente. Tudo muda. O infarto depois de 75, 80, não dói e a infecção urinária no idoso não apresenta os sintomas esperados.

O bom senso recomenda investir na formação de quadros profissionais que saibam mais sobre envelhecimento, mas não estão fazendo isso. No Brasil, hoje, há 1,3 mil geriatras, especialistas com título para uma população de quase 30 milhões de idosos. Deveria ser um por cada 2 mil idosos [15 mil geriatras]. Poucas escolas de Medicina têm Geriatria. Mas eu entendo que é preciso formar todos os profissionais de saúde para ter mais conhecimento de como lidar com um organismo ou uma mente de uma pessoa que está envelhecendo. [...]

 

O SUS e o envelhecimento

O SUS foi uma grande conquista e hoje está ameaçado. A única chance de envelhecer bem é com um sistema universal de saúde forte que funcione para absorver os problemas e evitar as complicações que vão exigir hospitalização. Só isso pode resolver as questões na base. É um ciclo: a hipertensão pode ser prevenida, mas não se previne, e a pessoa pode ter hipertensão aos 35, 40, 45 anos. Ela não encontra resposta do sistema de saúde porque este está sendo dilapidado. Falta o medicamento certo, o que acaba complicando o quadro. Aí vem obesidade, diabetes e, aos 58 anos, a pessoa tem um derrame em consequência da hipertensão, que poderia ter sido prevenida e que acaba custando mais caro. Se essa pessoa não morrer, poderá ficar 30 anos hemiplégica e necessitar de alguém que a cuide. É um impacto enorme nas famílias, especialmente nas mais pobres.

É por isso que eu vejo que, em vez de desenvolvermos as melhores políticas, estamos andando para trás. A cegueira dos responsáveis pelas políticas de saúde, que não enxergam a grande conquista que o SUS é, está se transformando em uma bomba-relógio que vai explodir, e rápido.

 

Estratégia Brasil Amigo do Idoso

Eu não entendo como o mesmo governo que achata o nível de investimento social, em educação e saúde, e dificulta a situação do idoso, tem a ousadia de falar de um Brasil Amigo do Idoso. Eu não acredito nesse projeto. Qual seriam as ações mais importantes e urgentes? É preciso centrar na saúde comunitária, caprichar na atenção primária, reforçar o SUS, ensinar quem vai viver e trabalhar tantos anos quanto eu. Trabalho há 48 anos, estou formado há 50 anos. Quem se formar em 2020 e trabalhar tanto assim, vai chegar a 2070. Serão 78 milhões de idosos no Brasil. Estamos quase perdendo a chance, pois a janela de oportunidades pode se fechar em breve.

Hoje o país já nem é tão jovem. A ONU considera um país envelhecido quando 14% da população têm mais de 60 anos, e nós estamos quase lá. Daqui a cinco anos vai ter mais idosos do que jovens. Os problemas tendem a se agravar se nada for feito. Se não há jovens suficientes para entrar no mercado de trabalho, bem formados, competitivos e produtivos, teremos uma base menor para sustentar mais idosos. [...]

 

A sociedade não vê seus idosos?

Sim. Por preconceito, por ser hedonista, por cultivar a beleza física. Não pode ter ruga, ser careca, ter cabelo branco, tem que estar sarado, faz parte da nossa cultura. O jovem é que é “bonito”. Não há respeito, não há uma cultura de reverência ao idoso. Só que cultura não se muda por decreto. Temos que informar, educar e batalhar para transformar.

Hoje eu noto que a mídia fala mais em envelhecimento do que antes. Pode não ser suficiente nem se traduzir em política, mas fala. Entenda que a pessoa não envelhece diferente do que foi. Ninguém amanhece com 65 anos, mas envelhece ao longo da vida. Envelhecendo é gerúndio. Por isso é importante falar sobre o curso de vida. Tem gente reclamando do envelhecimento como se fosse culpa do idoso.

Qual a alternativa? Ou você envelhece ou morre cedo...

(Entrevistado por Liseane Morosini, na Revista Radis)

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