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27/05/2019 Maria Edição 3912 Caminho de volta Crônica
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"Lá do poleiro, estava a outra peça do núcleo ruidoso da casa, a Mulata."

Maria

 

- Comadre, me arranja três ovos... O namorado de minha filha chegou e eu vou fritar uns biscoitos para um café...

A vizinha passava pela “cerca” do lado e entrava casa a dentro. Ela mesma ia debaixo do pé de manga-polvilho e colhia os ovos. Voltava pelo mesmo lugar, fritava os biscoitos e o casamento da filha estava garantido...

Do outro lado, nós ficávamos espiando o João do Fole naquela peleja, soprando brasas para esquentar os pedaços de ferros retorcidos e fazer o reparo nas encomendas. Às vezes, para descansar, dava o fole para sua mulher, D. Maria do Sô João do Fole, e ela abria e fechava o tal instrumento de sopro... As brasas brilhavam e o rosto de cada um ficava cheio de luz vermelha...

No quintal do outro lado, Dona Maria Cardosa e Zé Cardoso teciam a vidinha no tear. Eles pareciam dois passarinhos, conversavam baixo, com voz de andorinhas... Mas eles se entendiam, porque iam trabalhando, fiando, tecendo as cobertas mais bonitas de Estrela. Deviam se entender com a linguagem de um olhar antigo, gestos cristalizados na companhia serena que mantinham há longos anos. Era um casal sem altos e baixos, uma Sagrada Família sem o Jesusinho. Só mais tarde, trouxeram um menino da roça deles, cujo nome era um verso pra mim: capim de cheiro... O menino não se enquadrava naquela mesmice, até no nome, Tonho Pagão...

Ele fazia parte do outro núcleo da casa... Um núcleo barulhento, que vivia aos gritos esganiçados. D. Carlota, velhinha, magrinha, outro passarinho, depenado, tudo de uma cor indefinida, cor de palha seca: o colchão, o cobertor velho nos pés de palhada; D. Carlota, a cama da cor de sabugos velhos, esfarelentos, a roupa, os cabelos, as mãos, toda ela era um espiguinha de milho que não granou... Vivia nesse catre, num canto da cozinha onde o fogão esquentava o ninho da pobre velhinha. Sua filha, a empregada da casa, era azougada. Fazia todo o serviço brigando com a vassoura, com o espanador, com as teias de aranha, com o cisco de folhas secas, com o fogo que ficava alto demais, que ficava baixo demais, com as panelas, com as tampas das panelas... Só não brigava com a mãe velha, para a qual era só carinhos... Beleza de coração!

Lá do poleiro, estava a outra peça do núcleo ruidoso da casa, a Mulata.

Morro de saudades daquela maritaca grande, bonita, um Brasil verde-amarelo rodando pela casa, arrastando a corrente de arame que nunca soube pra que servia... Ela, a Maria Carlota e o Tonho Pagão faziam a casa ferver!

- Tonho, põe o cumê da Mulata na latinha!

O Tonho punha.

- Tonho, leva o prato de mingau pra mãe! Ligeiro, senão esfria...

O Tonho levava...

Lá no quintal, Zé e D. Maria viviam entre nuvens de algodão: era uma pequena fábrica, com peças feitas de madeira lisinha e brilhante, de tantos anos de trabalho...

Eu trançava o dia todo, descaroçava o algodão no descaroçador, para mim uma peça mágica, sementes de lá, algodão de cá...Um balaio de taquara ia enchendo sua barriga enorme de algodão branquinho, barbas de Papai Noel...

Eu gostava de tirar um fiapo do algodão para soprar e acompanhar seu voo pelo quintal fresco... Era um brinquedo encantado para mim: fabricar uma nuvem branca e, com um beijo-menino, mandá-la para o céu de mentirinha que brincava por cima do quintal...

Em outro terreiro, o do Aurélio e D. Orquiza, eu tinha um cavalinho perfumado, cheio de estrelinhas brancas, um pé de sabugueiro. Cada um de nós, filhos e meninos vizinhos, tinha um galho para galopar...

E, de lá, eu via a casa da Tia Isaura, a cozinha grande, com o pote de água fresca. Descia do cavalinho, bebia um copo grande de água e voltava pro galope...

Cada quintal tinha um encantamento. Dona Maria do Mulato fazia asas de anjo e eu não podia perder aquelas maravilhas. Penas brancas, de pato e de galinhas, lavadas e aniladas nas bacias grandes. Depois, elas iam para um lençol branco e o sol de ouro ia secando, uma a uma, com um beijo quente.

  1. Maria e as filhas não tiravam os olhos do colchão de penas molhadas... O segredo era vigiar o ponto da secagem, senão elas voavam e a meninada corria, voava atrás delas... Antes que isso acontecesse, D. Maria ficava de olhos. Na hora certa, outro momento mágico para mim, ela vinha com um filó enorme e, com doçura, ela deixava cada um de nós segurar uma beiradinha do cortinado para cobrir as penas... E de lá, saíam as asas de anjo mais brancas e lindas que eu já vi...

Num maio qualquer, surgiu a novidade: uma asa de garça, vinda inteirinha, marcou nova era na vestimenta dos anjos. Todo mundo queria uma igual. D. Maria recebia as asas quase prontas, era só lavar e anilar... Até hoje, não sei de onde vinham as asas de garças... De algum paraíso...

Assim, cresci, Entre quintais sem cercas - ou com cercas esburacadas - sem muros, sem peias. Em cada um deles, descobria um encantamento. Sô Tavinho curando cabaças com cinza, fazendo peças maravilhosas, cheias de recortes... As filhas davam o toque da pintura com tintas tiradas de sementes e flores do quintal... Lá no Dr. Abel, depois do jardinzinho moderno que ele levara para Estrela, de cercas de ferro desenhadas e uma imagem da Virgem Maria - numa gruta de pedras - havia o abacaxizal, onde colhíamos os mais doces para Dona Sinhaninha fazer delícias na cozinha.

De quintal em quintal, cresci, fiquei moça, virei professora, arranjei um BEM, virei mãe, virei vó, virei bisavó... Estrela era uma grande fazenda, com casas aqui e ali. Tudo era nosso, da turma da pá-virada, da qual eu e meus irmãos éramos membros efetivos...

Não havia a tal de privacidade, todo mundo lavava roupa, limpava café no pilão, areava vasilhas e punha as latinhas secando nas pontas dos poucos bambus da cerca velha... Ninguém se escondia, tudo era tão igual, tão singelo e puro. As roupas penduradas em arames farpados - não havia pegadores - sempre me deixavam angustiada... Pareciam corpos sem alma, pendurados ao vento...

*   *   *

Saio à porta. Todas as casas fechadas, com portões eletrônicos, muros altos, cercas elétricas...

Meu belo gatinho amarelo perdeu uma patinha e metade da orelha, em uma cerca de concertina da casa vizinha... Olho para um lado, olho para outro, doidinha pra arranjar um sorriso, uma prosinha... Se passa alguém, está pendurado em mil fios, com passos seguros, olhos fixos no celular, não sobra uma olhadinha pra Maria... Fico à espera e eis que surge um, com passos lentos, sem fios ligados... Aí, vêm os abraços antigos, os “três beijinhos, um pra casar”, as saudades velhas e novas, alguma aguinha lavando os olhos...

Tenho pena dos meus netos: vão pisar outros caminhos, entre cercas e muros...

Tão diferente de um caminho que percorri até aqui! Tenho certeza de que, até hoje, o sinal de meus pés está marcado na poeira do chão... Com a POESIA descoberta nos quintais estrelados, para não esquecer o caminho de volta...

 

 

 

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