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27/05/2020 Maria   Edição 3924 Casa estrelada
F/ Cordel sem métrica
"Traz o menino aqui, quem sabe benzer é o Padre!"

Maria

 Cresci entre mil “isso pode”, “isso não pode”... Pensando bem, era mais “não pode”, porque nada podia...

A vigilância ia além de mamãe e papai: madrinha Maria, a cozinheira, e Ana, nossa pajem, eram a continuação da voz da Dona Fia do Zurinho.

Para que nada de mau nos acontecesse, as vizinhas também tinham autoridade para bisbilhotar a nossa vidinha feliz... Só elas? Quem nos dera!

No meio do Largo da igreja tinha uma gameleira gigantesca. A sombra era tão fresca, que ela se tornou ponto de encontro para tudo: namoros, negócios, parada da única jardineira e... guarita dos “fiscais” da cidadezinha, todos amigos, todos compadres...

Dentro de casa, misturar comidas era um perigo constante: leite com manga? Jamais! Pepino? É veneno puro! Só o papai comia do tal veneno e não morria – era um herói! Couve, repolho e ovo na “janta” - nome chique para substituir o caipira “cumê” - eram proibidos...

Madrinha Maria explicava:

- Isso tudo é comida remosa, trapaia o estambo... Dá indigestã ou inté ursa...

Canjica? Longe do banho-de-assento (só existia esse banho, de bacia) e longe da janta... Garapa, nunca provei! Nunca havia um horário adequado. E, um belo dia, quase provei do tal caldo de cana... Não fosse um compadre que tinha lugar cativo no banco da Gameleira...

- Joga isso fora, menina! Vou chamar seu pai ali no negócio pra ele te dar um jeito...

Assim, fomos crescendo, entre chás e benzeções, entre mil madrinhas e mil vizinhas, entre mil compadres e... o Padre!

Nascia um neném! Banho na água de leite, por causa das brotoejas... Era muito bonito ver o neném tomar o famoso “banho branco”! Penso que ele foi a inspiração para o poético “banho de lua”...

Bom mesmo era quando a vovó gritava para a cozinha ouvir:

- Traz o caco de telha queimado!

Madrinha Maria vinha depressa, alertando:

- Arreda, gente, tirei ele agora das brasas!

Tchuimmmm...tchimmmm imimim: a água da bacia chiava, parecia que a Madrinha jogava era um pedaço de sol na água do neném! Eu ficava maravilhada e batia palmas!!! Meus irmãos, à volta da bacia, olhavam pra mim, sem entenderem o motivo das palmas... Com cara de mamãe, frita meu ovo, batiam palmas chués, chués...

Logo, o irmãozinho pegava mau-olhado ou quebrante - porque era muito lindinho!

- Leva ele pra Nega do Luiz Cavaco benzer!

- Não... pra quebrante é melhor a Nhana do João Messias...

Lá ia o bando atrás da Madrinha Maria...

- Aonde vocês vão?

Todo mundo tremia...

Era o Padre César, que rezava o breviário na igreja e não perdia nada...

Madrinha Maria gaguejava e ele, carrancudo:

- Traz o menino aqui, quem sabe benzer é o Padre!

Ana, muito enxerida, numa das vezes, palpitou:

- Mas o senhor benze e ele não sara... Não deixa a Madrinha Fia drumi... O leite dela vai secá, uai!....Só a Nhana que sara ele...

Assim, de idade em idade, as benzeções e costumes iam mudando.

O caco de telha, agora, já mocinhas, era usado pra esfregar no calcanhar... Depois, mamãe mandava a gente passar rouge e nós íamos felizes da vida, com o calcanhar piscando pra terra estrelada...

No quintal de todas as casas, havia um importante canteiro: o de plantas de se fazerem chazinhos, chás e chazões... Traduzindo, chás de neném, chás de mocinhas e senhoras e chás de gente velha...

Muitas vezes, a gente gritava lá do quintal:

- É de neném? É pra quê?

Madrinha respondia:

- É no canteiro das moças, aquele do meio!

- Pra quê?

Madrinha respondia de mau humor:

- Panha logo, deixa de ser ispiculadeira!

Eu pegava um punhado de folhas de losna e entregava na maior humildade... Ouvia pedaços de conversas, de palavras, mas era assunto de gente grande...

Ana cochichava:

- É pra corca, a moça de ...-ico..

- Qual Francisco?

Ana me beliscava, ameaçava contar pra Madrinha Maria, pra minha mãe, pros compadres da gameleira, pro Padre César... Eu jurava que não queria saber mais nada e beijava a boca em cruz...

Mastiguei gengibre, areei os dentes com folha de goiaba e cinza de fogão - eles ficam branquinhos, igual de moça de revista - e assisti a mil sessões de maquiagem nas casas onde havia moças namoradeiras.

  1. Lazinha falava com a Zizi:

- Fica quieta, senão vai secar com você mexendo, vai ficar com a cara toda repuxada...

Zizi ficava imóvel, com a cabeça no colo da mãe, e lá ia clara de ovo, sem bater, no canto dos olhos, no cantinho da boca, perto das orelhas... A irmã ajudava a segurar a pele, às vezes até sobrava um lugarzinho pra minha glória...

- Segura firme, até secar...

Pronto! Lá se ia a Zizi mais linda do que todas...

Noutra casa, a D. Mariquinha trazia uma rolha queimada, fumegando, e ia tirando as beiradinhas pretas, tirando, tirando, desenhando fios nas sobrancelhas da Nadir...O último retoque era um pintinha feita com lápis crayon, bem acima do lábio, ou no queixinho da moça...

Para todas as idades, havia hortelã, orégano pra tosse, romã pra rouquidão e garrafadas de raízes que a D. Sabina punha às colheradas nas mãos dos netos. Entre eles, eu, que era neto de todas as casas de Estrela. Manjericão e alecrim não podiam faltar. Era pra tirar tristeza sem saber o motivo, era tiro e queda...

Do alho, eu gostava muito! Sabe por quê? Era para esfregar no pulso das mulheres que desmaiavam...

Como eu achava bonito ver uma mulher desmaiando, se desmanchando entre saias que eram calças... uma peça mágica! Em pé, era saia; montada a cavalo, virava calça...

Morria alguém. Eu não podia ir, mas, sem querer, eu ia... Adorava esperar o povo da roça chegar! Tinha uma, mulher nova e rica e bonita, que vinha a cavalo, ao lado do marido, de lenço na cabeça, um chicotinho de boneca e os pés em estribo de rainha... Havia um silêncio profundo, quando ela chegava: o marido apeava e ia ajudar a esposa. Eu não perdia nada; um pezinho na mãozona do homem, um sorriso lindo para a plateia, um upa! Outro sorriso lindo e... ela amolecia nos braços do príncipe.

- Corre, gente, traz alho, traz alho... Alho! Alho!

A cozinha se mudava pra porta da rua. Todo mundo queria um dente de alho... O príncipe ajoelhado ao lado e o povo esfregando alho na bela dama....

Eu pensava:

- Vai ser bobo! Ele podia dar um beijo nela, igual na história, e nem precisava de alho...

Pronto! A Bela acordava, mais um belo sorriso - que eu pensava que era só pra mim - e ia caminhando com passinhos de nuvem pelos braços do marido...

Bom mesmo era arnica!

- Busca a arnica! Traz o arco! O sô Quim com dor demais nas juntas e o de lá vai dar pra poucos dias...

Madrinha falava baixinho:

- Dessa vez, ele vão pôr um escorpião vivo dentro do arco, purque só com a arnica num tá resorveno....

- Credo! Vou perguntar pra mamãe se é...

- Não vai perguntar nada! É segredo, se ispaiá, não vale...

E assim cresci, entre chás, benzeções, quebrantes, vento-virado, espinhela caída... Para tudo havia uma reza, uns raminhos, e éramos lindamente felizes!

Tinha uma casa amarela, de janelas e portas azuis, tinha um pai e uma mamãe, mil irmãos, uma igrejinha ao lado, tinha a Nega do Luís Cavaco – que tinha nome de rei: Luís, Rei de França. Tinha uma Nhana do João Messias, tecedor de balaios, tinha uma Estrela onde a gente morava...

Aposto, se fosse naquele tempo, nosso canteirinho importante, mamãe, Madrinha Maria e Ana punham esse bichinho novo pra correr!

- Como é o nome dele? Ah! Coronavírus...

Pena ele não chegar numa certa Estrela, ele ia voltar correndo pra China...

 

(Para meu caçula, Paulo Emilio, pelo aniversário no dia 31 de março.)

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