Variedades Direitos Humanos
Compartilhe esta notícia:
04/03/2020 Maria   Edição 3921 Exemplo de cidadania
F/ Dogtime
"O meio ambiente era a febre do momento: todo mundo queria salvar o planeta Terra..."

 

Eu conheço muitas ferramentas de utilidade nas casas e quintais antigos.

Quer dizer, pensei que conhecia... Enxada, foice, machado, serrote, pá, colher de pedreiro, martelo, alicate, prego, parafusos...

Mais tarde, já em outra cidade, o homem que arrumava a cerca do quintal, pediu uma “coisa” da qual nunca tinha ouvido falar:

- A senhora tem um enxó pra me emprestar?

-Enxó? O quê que é enxó?

Depois de mil explicações, concluí que nunca tinha visto a tal ferramenta... E o homem teve que se virar, coitado!

Isso foi há muitos anos, quando eu morava em Coronel Fabriciano, onde havia alguns nomes e costumes diferentes... Agora, com a campanha cerrada sobre a proteção ao clima e ao meio ambiente, tenho me esbarrado com poucas e boas...

O Sô Pedro, que já se tornou amigo da casa, limpa os canteiros, poda as árvores, remenda telas faz mil consertinhos no quintalão.

Pois então, pensei que, nessa altura da vida, já conhecia todas as ferramentas de roça...

- D. Branca, a senhora tem uma chibanca aí? Estou precisando de uma... E aproveitou a deixa: uma chibanca e uma soberba, tem?

Caí das nuvens! Chibanca, o que seria aquilo, meu Deus?! Soberba? Virgem Santíssima!

Pensei em algum remédio pra matar pragas, pensei em tudo... Via só o chapéu do Sô Pedro do lado de lá do muro...

- Sô Pedro, nunca ouvi falar nisso! O quê que é isso?

O chapéu se mexeu rumo ao portão e ele apareceu, com a carinha boa, como se estivesse pedindo um copo d’água. Pra mim, aquilo era grego ou aramaico...

Com paciência, me explicou que era tipo uma enxadinha, que servia para destocar mato duro... O destocar acabou de me tirar da prosa, não sabia nada... Soberba foi mais fácil, ele até achou umas nas caixas de ferramenta...

Então, à tarde, os filhos em volta da mesa, contei o caso da chibanca... Eles também não sabiam... Mas aí veio a lembrança de dois netos, na época, adolescentes...

O meio ambiente era a febre do momento: todo mundo queria salvar o planeta Terra. Rafael e Henrique, doidinhos para darem o exemplo e fazer algo que impressionasse as namoradinhas. Fizeram um plano até bem feito e digno de aplausos. Iriam plantar três árvores lá loooonge, perto de cemitério...

E, segredo absoluto, ia ser uma surpresa, o grande feito.

Pegaram as ferramentas que julgaram necessárias, regatas, bermudas, bonés, tênis, iam abafar! As duas mocinhas foram junto, dariam mais importância ao grande exemplo de cidadania... Além do mais, seria ótima oportunidade de um namorico à luz do dia, coisa mais moderninha, sem as fatiotas da noite, maquiagem, laçarotes... Tudo bem natureba, aprendi com eles... Voltaram satisfeitos com a missão cumprida.

Reinício das aulas, rotina, cada um foi para sua cidade e, num domingo...

Bem, sobrou pra vovó... Sempre sobra! Almoço pela metade e o relógio não colaborava. Buzina na porta, campainha, palmas, ô de casa. Meu filho foi atender...

- Mãe, o da Lucinhaveio buscar a catraca dele...

- Catraca? Uai, mas o Eduardo comprou uma há poucos dias...

Fui ver o que era:

- Bom dia... Pois não... O senhor está precisando de uma catraca? Pois não, meu filho vai pegar pro senhor...

O da Lucinha não estava com a cara boa. O filho dele - que dirigia o carro - tentava consertar a aspereza do da Bia, a bela Bia...

- Seguinte: os netos da senhora, o namorado da Bia, o Rick e o outro pegaram a catraca do pai e sumiram com ela...

Senti cheiro de arroz esturrado... Corri, desliguei a panela e voltei para continuar o caso da catraca...

Conversa vai, conversa vem, desceram do carro, explicaram... e minha cabeça lá no arroz esturrado e na turma que vem almoçar aos domingos.

Então, liguei pra minha filha, mãe do Rafael:

- Catraca?!!! Uai, mamãe, ninguém falou nada disso aqui, não... Mas vou dar uma olhada...

- Mãe do céu! É aquele, aquela, aquele trem de fazer buraco pra plantar mudas?

- É... Está aí? O da Lucinha bravo, sem paciência... Vou falar com eles que podem pegar a bendita catraca aí...

- Mãe, Jesus, misericórdia! Só que tem uma coisa: O NERO COMEU O CABO DELA, TODINHO!!!

- O quê?!!!

- E agora? O quê que eu faço com o da Bia?

(Prometi - prometemos - pela milionésima vez, cochichando ao telefone...):

- Vou soltar esse cachorro! Isso nem é cachorro, é um bezerro doido! Que ódio!

E fiquei falando ao telefone, desabafando:

- Este cachorrão ainda vai fazer coisa pior! Já comeu a barra de seu vestido de renda, já comeu sua toalha de mesa, late feito um doido! Nossa Senhora, dá um fim nesse bicho!

Fui lá fora, contar o caso para o dono da catraca, quase chorando, torcendo as mãos, meu filho a postos, para ajudar a coitada da mãeavó...

De repente, o da Lucinha começou a rir, ria, dava gaitadas, saiu do carro, vermelho, rindo, rindo, gaitando... Parecendo o Nero, se o Nero risse...

Pensei que ele tivesse sido acometido de um ataque de fúria, corri, busquei uma água geladinha pra ele...

Depois de rir, de tossir, de enxugar o rosto e o pescoço com um lenço mais desusado, todo de listras verdes e vermelhas...

Aí, fiquei observando o da Bia, na maior antipatia, achando mil defeitos nele: uma dentadura de gengivas cor de moranga e duas mãos - que colocou nos meus ombros - pareciam duas pás de construção... Eu até caí assentadinha na cadeira...

- Ah, foi o Nero? Não negou a raça!

E continuou com risada de moranga, voz bem mais doce:

- Tem nada, não, Dona... Fui eu quem dei o filhote pro seu neto... Já pus o nome nele - de Nero - porque sabia que ele era de raça braba... Com esse, ninguém brinca...

Passado o sufoco, até achei o mais simpático... O carro sumiu na esquina, eu tomei água com açúcar e, desanimadinha, fui fazer outra panelada de arroz...

Foi assim que meus netos deram a maior lição de responsabilidade pública e exemplos de cidadania.

- A árvore pegou?

- Capaz... Henrique voltou pra BH. Rafael ficou incumbido de aguar a árvore todos os dias... Mas, sem as namoradinhas e o primo, adeus, meio ambiente!

Quando passamos por lá, fazemos o Sinal da Cruz em frente ao cemitério e bate uma tristeza na gente, porque lá estão as lembranças de nosso povo. Mas, daí a pouco, a tristeza vai embora: no lugar das árvores, só os montinhos de pedregulhos...

E voltamos dando risadas do entusiasmo dos netos com o planeta Terra.

 

Compartilhe esta notícia:
Nome:
E-mail:
E-mail do amigo:
DEIXE UM COMENTÁRIO
TAGS
ÚLTIMAS NOTÍCIAS