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07/01/2019 Revista O Lutador Edição 3908 Superstições mineiras Maria
Mulher sentada ao lado de um berço
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(Esta crônica é para o casal Geraldo Xavier Corgozinho e Maria Augusta Corgozinho, que comemoraram Bodas de Ouro em Ponta Grossa, Paraná, onde residem e recebem a Revista O Lutador, apreciando a página da Maria.)

Muito devagar – devagarinho demais – encontro explicações para costumes estranhos, para crenças, para superstições que povoaram minha vida. Havia mistérios nas palavras, pausas, olhares que inibiam a curiosidade de meninas enxeridas e da “pá virada”, como uma que eu criei dentro de meu coração... Menina atemporal, sem idade, sem limites para me visitar nas horas mais fora-de-hora. Irreverente, de vez em quando, sai do sótão onde gosta de viver, entre fadas, lembranças, saudades, teias de aranha, quem sabe, bolor, ferrugem, palavras desusadas, histórias sem-pé-nem-cabeça. As outras meninas que criaram raízes dentro do meu coração cresceram, sonharam e... sumiram nas asas dos sonhos, nas esquinas do tempo. Ficaram velhas. Somente a menina mágica não cresceu: não ousa sair do sótão, onde vive junto às personagens, pessoas, histórias e lendas que teceram seu tempo-menino.

Pois a tal menina, que eu conheço tanto, não resiste à muralha do tempo e, de vez em quando, põe as manguinhas de fora, palpitando, concluindo histórias inacabadas, contadas por bocas antigas e falas silenciadas. As respostas surgem no dia a dia da vovó – ah! a tal menina hoje é vovó... - e a curiosidade se acende, a chama clareia a memória do sótão e a crosta é removida... Aí, a menina reina...

*   * *

Vi no jornal a pesquisa científica sobre os desejos estranhos que acometem as futuras mamães: chupar laranjinha azeda, comer sabonete e carambolas inexistentes, tudo, de preferência, em altas horas da madrugada, tirando o pobre marido de seu descanso. Toda a cidadezinha participava dos desejos da simpática figura da mãe, dando-lhe auras de anjo, de um ser sobrenatural com poderes de fabricar uma vida nova, capacidade só creditada a Deus. Havia uma luz naquela figura, havia um traço divino nas mulheres que preparavam um neném. Eu percebia pelos olhares, pelos cochichos, pela solicitude de todos, que uma coisa muito especial estava acontecendo. Mas meninas não podiam conversar sobre “certos assuntos” de gente grande...

Sempre ouvi histórias de amigas e, agora, pelo jornal, tantos anos depois, talvez tenha a resposta para o que uma delas contou em uma reunião de professoras.

Morando em cidade grande, sentia-se presa no apartamento, acostumada que era com quintal, com amplidão e liberdade. O marido saía cedo e só voltava à noitinha. E ela, presa...

Foi quando ficou esperando o primeiro filhinho. Pelas contas, o neném chegaria no princípio de janeiro...

Desejos, os mais absurdos: comia alho cru, folhas de verduras, mordiscava o sabonete, uma coisa mais esquisita! Lá um belo dia, teve vontade de comer terra, nem que fosse um mísero pedaço de tijolo. Um punhadinho de terra escura da horta, qualquer coisa servia.

Vozes antigas vinham-lhe à cabeça:

- Se não comer o que tem vontade, seu neném nasce com a carinha deformada... Minha comadre teve um filho com nariz de caju, porque não arranjaram caju pra ela matar o desejo...

Mas onde arranjar terra? Onde achar uma horta? Um vaso de flores? Uma lata de cebolinhas? Pensou que ia morrer de tanta aflição.

Mas “Deus é bom”, dizia ela. Sem saber como, talvez por instinto, se lembrou do velho e bom filtro de barro, peça importante nas famílias antigas e em outras, modernas e tradicionais...

Pôs o forro mais bonito do enxoval tampando o filtro... A tampa, escondeu-a em lugar secreto da casa...

Não teve pejo: de quebradinho em quebradinho, de lasquinha em lasquinha, comeu toda a tampa do filtro durante a gravidez... No dia de Natal, ela se deu, de presente, o último pedacinho da tampa do filtro...

E dizia, aliviada:

- Graças ao Menino Jesus, meu filhinho não vai nascer com cara de tijolo, de telha, de terra... O filtro me salvou!

*   * *

Janeiro chegou! Tudo pronto, o neném ia chegar...

E chegou! Lindo, cor de rosa, com carinha de anjo.

Na efusão do Ano-Novo, na alegria do primeiro filho, quando todos comemoravam a felicidade, sem mais nem menos, a mamãe novata, pensou em voz alta:

- Já pensou se o meu neném nascesse com cara de filtro?

Ninguém entendeu nada, o marido abraçou-a, todos bateram palmas e ninguém nunca mais tocou no bendito assunto...

O neném se chamou Francisco, em homenagem ao santo que idealizou o primeiro presépio, réplica da gruta onde o Jesusinho havia nascido...

Pensando na amiga, vou colocando os três Reis Magos no caminho de areia que fiz no presépio antigo...

Tenho certeza de que algum deles vai pedir para eu (re)contar a história do menininho que ia nascer com cara de filtro...

- Vou contar, mas não espalhem, senão o Francisco vai sofrer bullying na Faculdade...

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