Tecnologias e criminalidade de braços dados

Eugênio Magno 

Não dá para acreditar que governos, justiça, polícias e grandes empresas sejam tão ingênuas a ponto de permitir que as grandes plataformas digitais tenham tantas informações e controle político, econômico, estratégico e das comunicações, entre outras áreas, submetidas à meia dúzia de monopólios tecnológicos privados.

As telecomunicações e a internet, juntas ou separadas, são as campeãs em burlar leis, extorquir e fazer reféns os usuários dos seus serviços, chantagear nações e governos, permitir o vazamento de informações confidenciais, além de ser usadas como ferramentas de ponta pelos criminosos cinco ponto zero.

Enquanto as polícias se ocupam com viciados em crack, pichadores e ladrões de galinha e de botijão de gás, os crimes cibernéticos campeiam livremente.  

Desrespeito total...

Os subprodutos ímprobos do mundo tecnológico têm ofuscado os inegáveis benefícios da tecnologia. O telefone, por exemplo, deixou de ser o melhor meio de comunicação para se falar com familiares, amigos e parceiros de negócios. Atender a uma chamada telefônica de número desconhecido atualmente quando não é chateação é um risco. A maioria das ligações recebidas são de empresas de telemarketing oferecendo produtos que não interessa e de golpistas. Quem depende do telefone para trabalhar sofre com o assédio constante de oportunistas e criminosos. Um mínimo descuido leva o interlocutor a cair nas armadilhas, a cada dia mais sofisticadas, dos bandidos. Os vigaristas usam vozes e protocolos de abordagem idênticos aos das empresas de call center e telemarketing. Será que os números para os quais eles ligam são meros frutos da aleatoriedade ou vazados por empresas e instituições que coletam informações das pessoas e, em total desrespeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), cedem seus mailings de acordo com suas conveniências e interesses?

No campo da telefonia, além dos maus serviços, cobranças indevidas e cortes súbitos nas ligações, existem vários outros aspectos que chamam a atenção. Quando estamos conectados a uma rede wifi, por exemplo, quase todas as ligações feitas ou recebidas são realizadas pela internet, via wifi; quer dizer, a operadora de telefonia cobra, mas não é ela que realiza o serviço. Outra situação bizarra é a moda da terceirização. Ela chegou a tal ponto que até mesmo as empresas de telefonia terceirizaram seus serviços de atendimento telefônico ao cliente. A falta de critérios nessa área é tão absurda que uma mesma empresa de call center atende demandas de usuários de serviços de fornecimento de energia, de água, de telefonia, de internet, de indústrias e empresas comerciais, de bancos e, o pior, de instituições públicas. Nessa lógica, os responsáveis pelas organizações ficam totalmente invisíveis e o cliente sem acesso direto ao fornecedor do serviço ou vendedor do produto. A dificuldade de fazer o contato, somada à burocracia telemática da ligação, o tempo de espera e a falta de autonomia das terceirizadas para resolver problemas complexos constituem barreiras que desestimulam o reclamante a reivindicar seus direitos. E, mais, como uma mesma empresa de call center atende várias organizações – públicas e privadas –, é muito provável que mailings transitem facilmente entre umas e outras empresas e instituições. Sem contar o lucrativo comércio de dados de usuários e consumidores, uma prática criminosa que já se tornou usual e não tem mobilizado as autoridades no sentido de combatê-la.

Existem leis para regular as teles, mas elas não são cumpridas como deveriam. Os descumprimentos se dão tanto porque os órgãos de fiscalização não se encontram aparelhados o suficiente para exercer o controle, quanto porque falta vontade política para encarar esse desafio, e probidade por parte de certos agentes públicos que volta e meia são flagrados em situações vexatórias de favorecimentos em troca de benefícios pessoais. Acrescente-se ainda o agravante de os próprios governos municipais, estaduais e federal, ao terceirizar serviços de call center, facultarem às empresas prestadoras desses serviços o acesso aos dados do contribuinte. E, a partir daí, só Deus sabe o que é feito com esses dados; muito embora seja de conhecimento público o valor monetário, de influência e de poder que esses dados representam. Recentemente o Ministério Público constatou irregularidades no INSS: associações fantasmas faziam descontos não autorizados na folha de pagamento dos aposentados.

Um dado curioso: Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CEF) são as principais empresas usadas pelos criminosos cibernéticos para dar golpes na população e os aposentados são os principais alvos dos golpistas. Esses crimes utilizando BB e CEF seriam mais uma das estratégias do capital para forçar a privatização desses dois patrimônios públicos brasileiros, falta de segurança dos dados, ou mera coincidência?

Por que tanta passividade?

É uma insanidade convivermos com tanta passividade no combate aos golpes sem a aplicação de penas mais severas nessa área. Não obstante a existência de leis, essas questões envolvendo as teles é antiga e foi agravada com a convergência de mídias. Oitenta e nove por cento da população brasileira acessa a internet pelo telefone e os algoritmos estão sempre de plantão captando as mais inimagináveis informações dos usuários para uso do poder, do capital e também dos criminosos.

No quesito tecnologia digital cabe observar que os governantes brasileiros – desde os anos 1990 –, têm feito um grande mal ao estado e à nação. Falta expertise para comprar tecnologias e aplicativos em todas as esferas dos poderes públicos. Eles compram mal e submetem a população, inclusive analfabetos totais e a grande maioria de analfabetos funcionais e informacionais, ao uso compulsório das tecnologias, muitas delas de difícil interação e outras ruins mesmo, com péssima arquitetura comunicacional. As interfaces ignoram todas as conquistas da linguagem humana e da comunicação social. O fato da comunicação e da linguagem que levaram milênios para serem criadas, codificadas e aprimoradas padecerem, em poucas décadas, de uma lógica tolamente subvertida, é um aspecto importante que não tem merecido a devida atenção e que talvez seja o cerne dessa questão. Ao invés de termos uma Comunicação Tecnológica, com a comunicação que já era algo estabelecido e conceituado, como matriz do processo, a tecnologia engoliu a comunicação, até na forma de ser nominada. Em vez de Comunicação Tecnológica, o que temos é Tecnologia da Informação e da Comunicação. A comunicação perdeu seu protagonismo até na nomenclatura; de substantivo passou a ser mero adjetivo da tecnologia. E, essa nova lógica usurpadora não atingiu apenas a comunicação. Praticamente, quase tudo no mundo está submetido à tecnologia, quando a tecnologia é que deveria estar à serviço da vida e de tudo em todos os sentidos. No caso específico da comunicação, é importante sublinhar que os especialistas em tecnologias têm se mostrado péssimos comunicadores. Aliás, o pessoal de Tecnologia da Informação (TI) ao desenvolverem softwares e aplicativos deveriam ter ser sempre ao lado um profissional de comunicação, para se evitar tantos equívocos e dificuldades para os usuários, pelo menos enquanto cada profissional não esteja fazendo o seu melhor naquilo que lhe compete.

Essa ditadura do deus-tecnologia precisa ser derrubada. A tecnologia é uma conquista humana muito importante para figurar como usurpadora e substituta de tudo que já foi conquistado. Às autoridades mundiais cabe a responsabilidade de reposicionar a tecnologia como recurso auxiliar, uma verdadeira aliada da humanidade e de suas práticas e relações sociais e de produção.

Os monopólios digitais possuem mais informações sobre as populações do mundo do que os governos e os serviços de inteligência dos estados nacionais.

Atualmente no Brasil acontece um grande debate em torno da regulação das plataformas digitais. Em vários países já existe essa regulação e por aqui, nem mesmo o controle das empresas de telecomunicação é feito com o rigor necessário. Quanto às big techs, o debate não deveria ficar apenas em torno de se regular ou não, mas também de como deve ser a regulamentação, quais serão os mecanismos de controle, que penalidades vão ser aplicadas às empresas que descumprirem a lei e, a partir de quando a regulação estará vigendo. O Marco Civil da Internet já tem quase uma década, data de 2016, e a população clama por celeridade na aprovação da sua complementação. Caso isso não aconteça já, corre-se o risco de que se aprofunde ainda mais a sujeição da população a essa exploração desmedida por parte das grandes plataformas e das empresas milionárias que pagam fortunas pela utilização desses serviços e da apropriação dos dados do povo para exercerem cada vez mais controle sobre todos. Por essas e outras, quando se fala em regulação, é preciso que se respeite o direito do cidadão de optar por usar ou não a tecnologia em suas interações com os serviços públicos. E para aqueles que desejam utilizá-la é de fundamental importância que sejam disponibilizados - gratuitamente - pelo estado, para toda a população, cursos de letramento para o uso das tecnologias na vida cotidiana.

Assim como a regulação da internet e a operação das big techs carecem de urgência, as questões envolvendo a telefonia também precisam ser encaradas pelo governo. No entanto, aqueles que se dizem representantes do povo pensam e agem na direção contrária. Recentemente o Congresso Nacional decidiu manter o veto do ex-presidente, Jair Bolsonaro, que barra o Projeto que criaria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL2.630/202), conhecido como "PL das Fake News". O veto foi mantido pelos deputados federais com um placar de esmorecer o cidadão: 317 votos a favor, 139 contra e 4 abstenções. Entre outros pontos, o texto barrado estabelecia até cinco anos de reclusão e multa para quem cometesse o crime de “comunicação enganosa em massa”, definido como a promoção ou o financiamento de campanha ou iniciativa para disseminar fatos inverídicos e que fossem capaz de comprometer o processo eleitoral. Como a punição de quem espalhar fake news foi impedida, espera-se um festival de mentiras nas eleições municipais deste ano.

Num país em que uma lei de combate às fake news é rejeitado, vale tudo; nas redes sociais e também nas mídias corporativas. No dia 18 de junho de 2024, circulou em todo o país, inclusive nos veículos de comunicação tradicionais, a “notícia” de que um dos maiores intelectuais vivos da atualidade, Noam Chomsky, teria morrido. Nenhum dos veículos que divulgou a inverdade fez uma apuração decente que pudesse confirmar a veracidade do possível fato. Só no final do dia foi descoberto que Chomsky havia tido alta do hospital em que se encontrava internado no Brasil e que passava bem, embora ainda estivesse sob cuidados médicos. Infelizmente, nesses casos, os desmentidos e as correções só vêm a público tardiamente, depois do choque, dos incômodos causados às famílias das vítimas da desinformação e da comoção geral do povo. Nesse caso, envolvendo Noam Chomsky, descobriram que a notícia que deu origem a essa boataria veio de uma coluna de obituários de um portal internacional que homenageia pessoas em vida quando, quase sempre as pessoas são homenageadas apenas depois de mortas. No episódio em questão, ficou clara a falha do jornalismo em tornar notícia o que não ocorreu, pois sem fato não há notícia. E, como temos depositado todas essas aberrações na conta das fake news essa é mais uma para entrar no rol delas. Isso serve de alerta para o perigo das mídias digitais. A tal coluna, batizada de Obituary se aproveita e se aproveitou dessa contradição para ser notada e os jornais, portais e demais veículos de comunicação que multiplicaram a informação pecaram por não fazer apuração. E, na sequência, internautas que gostam de imitar repórteres carniceiros e dar “furos de reportagens” e manchetes ao gosto dos algoritmos, ajudaram a promover a desinformação.

Difícil convívio saudável

Em meio a tantos abusos, falta de punição e regulação, o convívio saudável com as novas tecnologias tem se mostrado difícil. Sobram desvios de finalidade, conflitos de interesse e muitas outras mutretagens na internet, na telefonia e nas redes sociais.

O marketólogo e psicólogo estadunidense, Adam Alter, autor do livro “Irresistível: porque você é viciado em tecnologia e como lidar com ela”, tem alertado para o perigo de estarmos, em média, oito horas por dia em frente a uma tela de computador, tablet ou celular. Embora consciente de vivermos em um mundo tecnológico, Alder sugere que devemos aproveitar apenas o melhor das telas e deixar o pior para trás. Em entrevista ao Instituto Conhecimento Liberta (ICL), o especialista teceu um corolário de considerações e advertências sobre o uso vicioso e viciante das tecnologias.

Segundo Adam Alter, estudos recentes constataram que as pessoas veem três vezes mais coisas nocivas do que as produtivas nas telas e isso é muito preocupante, pois, a tecnologia digital não proporciona nenhuma pausa. Filmes têm fim. Livros e novelas também têm capítulos e fim. Mas, a mídia digital não tem fim, é como o design dos cassinos, onde as pessoas sempre são convencidas a continuar jogando. Não tem sinais de paradas ou relógio que informe a quantidade de tempo em que se fica hipnotizado pelo vício de querer sempre mais. As evidências neurocientíficas mostram que tem muita gente vidrada em coisas viciantes, ainda que delas não se goste. As mídias sociais, por exemplo, são lugares em que as pessoas permanecem horas a fio, mesmo que o gostar diminua, apenas em função do querer estar conectado o tempo todo. Não é permitido mais não fazer nada. As populações desenvolveram o vício de se “ocupar” o tempo todo, mesmo que seja em uma ocupação com o “nada”, com a virtualidade, a improdutividade.

Além dos problemas cognitivos causados pelo vício tecnológico e das fake news, prática flagrante na rede, é preciso que se atente para as ideias emocionais que circulam na internet de forma massiva. Essas ideias baseadas em emoções viajam muito mais rápido do que os fatos verdadeiros. A emoção temperada com a negatividade e a raiva, alimentam ainda mais o vício em mídias digitais. As grandes plataformas detêm o monopólio das nossas atenções. É muito poder nas mãos de quatro ou cinco detentores do controle das principais plataformas com alcance mundial. Esses empresários têm mais poder do que os mais potentes países do mundo, como já foi dito. Mal comparando, é como foi num passado recente, ter em mãos a bomba atômica. Os donos dessas megacorporações não têm apenas o monopólio das nossas atenções, como também todos os nossos dados pessoais, comerciais e geográficos. E somos nós mesmos, as vítimas desse controle, os lacaios de nós próprios, com a cumplicidade ativa dos governos a nos fazer reféns de um controle absoluto com fins obscuros.

O sistema capitalista deu um salto extremamente ofensivo contra a humanidade, saiu da economia da materialidade do consumo para a economia da atenção. É fundamental que aconteçam movimentos de base que discutam o impacto negativo das mídias digitais em nossas vidas e que comecemos a boicotar as plataformas e realizar ações de combate a essa força hegemônica que domina o planeta. O autor de “Irresistível”, sugere que haja pressão contra as plataformas, de baixo, pelas bases – pela massa usuária –, e por cima, pelos governos e pelos poderes públicos que também são consumidores-usuários, clientes das plataformas digitais. Eles têm poder legislador, fiscalizador e de polícia, para coibir os abusos constantes praticados pelas plataformas, regulando-as, como já acontece em algumas nações.

É crucial que hajam leis e os governos do mundo inteiro promovam regulação urgente das grandes plataformas. A pane global, em meados de 2024, num desses sistemas, com prejuízos gigantes, em várias áreas, foi uma pequena demonstração do imbróglio em que o mundo se meteu. Pessoas, empresas, instituições e governos, todo o mundo estão submetidos, total e completamente, a uma tecnologia sobre a qual não se tem nenhum controle e que em breve nem mesmo os seus controladores poderão controlar, tamanho é o avanço e o domínio da Inteligência Artificial e dos algoritmos.  

Como lutar e resistir a tantas investidas?

A situação nos coloca diante de um grande paradoxo: como lutar contra um sistema que, apesar de tantos problemas, representa avanços tão significativos?

Os desafios são complexos e para enfrentá-los é preciso começar de algum ponto. Uma maneira simples e possível de iniciar imediatamente esse enfrentamento é adotar uma postura de menor dependência dessas tecnologias, utilizando-as somente para o que seja construtivo. Outro procedimento que vem sendo recomendado é evitar todas aquelas plataformas que empanturram o usuário de conteúdos para os quais ele não tenha tempo suficiente de avaliar a qualidade do que vai consumir. Passar parte do dia sem tela, desinstalar aplicativos supérfluos, retirar a maioria dos lembretes dos celulares e deixar somente os avisos do que de verdade interessa é o que têm aconselhado os pesquisadores que estudam os efeitos nocivos das tecnologias digitais.

Já numa escala macro, só uma governança mundial para dar conta dessa e de muitas outras demandas de ordem planetária. Até que isso ocorra pra valer, os estados nacionais deveriam fazer esse enfrentamento, cada um criando sua internet estatal, para garantir cidadania plena às suas populações.

Tal como o mundo funciona, todos necessitam de tecnologias. Elas estão presentes na vida de todo e qualquer indivíduo ou organização. Para o bem ou para o mal, elas estão aí e isso não tem mais volta. Como utilizá-las, de que forma a humanidade é submetida e se submete a elas é a questão. Governos, universidades, imprensa, escolas e sociedade precisam debater exaustivamente esse tema para melhor compreendê-lo e estabelecer parâmetros e limites para a sua utilização.

Fonte: Minas Gerais - Blog de Eugênio Magno

F/ Pixabay

 

 

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