A época de Ezequiel foi um período difícil e de sofrimento para o povo. As instituições tinham desaparecido com a queda da cidade de Jerusalém (ano 587) e a destruição do Templo (ano 586). O povo havia perdido tudo. Estavam numa terra estrangeira, não havia reino, não havia culto, não havia sacrifício de animais, não tinham terra, não tinham razão para viver: “Junto aos rios da Babilônia nos sentamos e choramos [...] penduramos nossas harpas, [...] Como cantar um canto de Javé em terras estrangeiras (Sl 137, 1-4).
Surgiu assim a grande pergunta: de quem é a culpa? Por que tudo isso aconteceu? Será que Deus abandonou seu povo? Ou teria passado para o lado dos inimigos? Ezequiel teve de se debruçar sobre essa questão e ajudar o povo diante desse momento de crise de fé e crise de esperança em Deus. O poderio de Marduk, deus dos babilônios parecia indicar que o Deus de Israel havia sido derrotado.
Somos responsáveis por nosso destino
O povo sentiu desabar a certeza que depositavam no Deus da Aliança: o Deus de Abraão, de Isaac de Jacó. E começaram a pensar que estavam sendo castigados pelo erro dos reis e outras autoridades. Como se Deus descontasse a culpa dos pais nos filhos, como já aparecera em Jeremias: “Os pais comeram uvas verdes e a boca dos filhos ficou amarrada” (Jr 31,29), aparece em Ezequiel (18,2) e revela a situação do povo neste momento de cativeiro.
Iluminando essa situação, nos capítulos 18 e 33, Ezequiel não se restringe a dar instruções a respeito do culto, ele apela para as questões morais e éticas, numa atitude verdadeiramente profética. A pregação profética sustenta que a derrota não é de Deus, mas do povo, por seus pecados e rebeldia. Somente o Deus de Israel é o Deus criador e Senhor da história. Essa audácia da fé é que possibilitou manter viva a esperança num momento de crise tão grande.
É possível que alguns pensassem que essa crise seria algo passageiro, mas o longo Exílio ia enfraquecendo essa falsa esperança. Na mente do povo conviviam duas possibilidades: alguns acreditavam que Jeconias, o rei exilado na Babilônia, era o legítimo rei e por meio dele seria restabelecida a monarquia descendente de Davi. Outros aceitavam Sedecias como rei e pensavam que a salvação estaria com aqueles que não vieram para o Exílio e permaneciam em Judá (Jr 42,10). Ao que parece, o profeta Jeremias teria se aliado a esse grupo (cf. Jr 22,24-30), já Ezequiel ficou, provavelmente, com o primeiro grupo, um indício disso é que seus oráculos datam da época do rei Jeconias e ele não chama a Sedecias de rei (cf. Ez 17,11-15).
O problema do mal, da dor, do sofrimento, sempre foi um problema para Israel (e depois para a fé cristã). Esse problema se agrava com a experiência do Exílio na Babilônia, quer pela dureza da situação, quer pelo modo de pensar: Quando Deus castiga todo o povo, é justo que o inocente pague junto com os pecadores? O Exílio faz ver que a culpa vai cair no pecado do povo. Ou seja, o que colhemos agora é fruto dos erros, desvios e pecados acontecidos no decorrer de nossa história. O que estamos sofrendo é fruto de nossas infidelidades a Deus e à Sua Palavra.
Ezequiel, no entanto, vai além desse modo de pensar. Em seus relatos sobressai que cada pessoa e cada geração é responsável pelas suas escolhas, pela sua conduta, quer a nível pessoal ou coletivo. Ou seja, cada um “é responsável por seus próprios crimes” (Ez 18,13). Não há uma herança nem para o bem. Nem para o mal. Por outro lado, cada pessoa e cada geração tem a oportunidade, a possibilidade para a conversão, para a mudança de vida e reorientação do seu modo de ser e agir: “o que eu quero e que se converta dos seus maus caminhos e viva” (EZ 18,23). O que se converte se salva, o que se perverte se condena. Ezequiel responde a um problema que ultrapassa, em muito, o culto e o santuário (Templo), ele sublinha fortemente o aspecto pessoal da responsabilidade humana diante de Deus.
Se nesse momento do Exílio, o povo sofre por erros de outros, todos devem se empenhar pela transformação para sair dessa situação. Não basta chorar o leite derramado, é preciso buscar alternativas para a mudança que deve acontecer. Pois, não é a maneira de Deus agir que está errada, mas a maneira do povo é que não é justa (cf. Ez 18,25). Cada um será julgado de acordo com a própria maneira de viver (cf. Ez 18, 30). É preciso que se libertem das injustiças e “formem um coração novo e um espírito novo” (Ez 18,31). E termina com algo muito necessário para os nossos dias: “Eu não sinto prazer com a morte de ninguém [...]. Convertam-se e terão a vida.” (Ez 18,32).
Ezequiel, assim como os demais profetas bíblicos, representam um fermento de evolução, que faz crescer a religiosidade do povo de Israel. Por sua influência passa-se de uma religião de massa e de um culto social, para uma religião mais personalizada, que engaja a responsabilidade de cada um diante de Deus, mas sem perder o valor da comunidade. A decisão da fé é individual, a sua expressão é comunitária. É preciso sempre conjugar o “eu creio” (decisão pessoal) com o “nós cremos” (caminhada comunitária).
É nesse sentido que vale a pena resgatar o Documento nº 100 da CNBB: Comunidade de Comunidades: uma nova paróquia. Ele trata da conversão pastoral da paróquia por meio da “rede de comunidades”. Nele se reafirma: “Leigos e leigas devem crescer na consciência de vocacionados a “ser Igreja” e precisam dispor de espaço para atuarem na comunidade assumindo sua participação na construção da comunidade de comunidades. Dentre os sujeitos da conversão pastoral, merecem destaque as famílias, as mulheres, os jovens, e os idosos.” (CNBB, Doc. 100, n. 214).
"Sentinelas da vida"
Ezequiel tem a missão de ser o sentinela (Ez 33,7), de anunciar o perigo ou desafio que se aproxima e ajudar o povo a se preparar para enfrentá-lo. Ele é feito sentinela não propriamente de todo o povo de Israel, mas do grupo que estava no Exílio da Babilônia. Muitos se sentiam sozinhos, abandonados, sem rumo, sem esperança, sem futuro. Era missão do profeta cuidar dessa parte do rebanho de Deus, ser capaz de encorajar a cada um/a , de lhes resgatar a fé e a esperança em Deus. Devia ainda sacudir os indiferentes e chamar a atenção dos que se mostravam presunçosos. Devia se dirigir tanto aos ímpios, quanto aos justos, que faziam parte do povo. Devia “puxar a orelha” dos que precisavam de conversão e animar os demais a perseverar na fidelidade a Deus, não desanimando diante das adversidades.
Deus fez de Ezequiel um “sentinela da vida”. É nesse sentido que a missão de Ezequiel se torna mais árdua. O povo no Exílio estava dividido. Além disso, falsos profetas, bem como falsos pastores espalhavam mais confusão no meio do povo. Isso se torna claro no capítulo 34 do livro de Ezequiel. Como sentinela, o profeta levanta a voz contra os pastores de Israel que haviam se convertido em pastores de si mesmos e em exploradores do povo.
Os pastores de Israel são os responsáveis políticos de Jerusalém que, ao invés de cuidar, proteger e guardar o povo, se tornaram seus exploradores. Levaram o rebanho do Senhor ao sofrimento e à morte. Ezequiel deixa claro que são as autoridades de Judá os responsáveis pelo Exílio na Babilônia. O povo foi abandonado por seus pastores e entregue à sua própria sorte. Mais ainda: os fortes oprimiam os mais fracos, os grandes exploravam os pequenos. Havia desordem em todos os níveis. E os sofrimentos do Exílio são o resultado da má gestão dos pastores e das autoridades de Israel. A ação de Deus será de restabelecer as condições de vida do povo.
Ezequiel e seus discípulos, como “sentinelas da vida”, têm a missão de converter a situação do Exílio em um novo Êxodo, uma nova empreitada rumo à libertação do povo daquela situação de dor e sofrimento. Deus agirá por meio de seus intermediários, por meio de seus sentinelas. No relato bíblico, a exigência de Deus é grande, a seriedade é demonstrada pela ameaça de morte e derramamento da ira divina sobre os que profanaram o nome de Deus (Ez 36,18-20) e de garantia de vida nova, de purificação, de volta à Terra para quem permanecesse fiel (Ez 36, 23-24). A razão dessa exigência tão grande é que o Senhor quer formar dessa comunidade do Exílio o Novo Povo da Aliança. A missão do profeta é de apresentar um futuro de esperança e de salvação para o povo.
Ezequiel já anunciara ao povo a destruição da cidade de Jerusalém e também do Templo. Agora, como sentinela da vida, tem a missão de dirigir ao povo uma palavra criadora, de esperança, luz e salvação. Há um grande plano de restauração para todo o povo. O Senhor fará com seu povo uma nova Aliança (Ez 36,28) e lhe concederá novamente as Suas bênçãos. Deus mesmo será o seu Senhor e pastor. Os israelitas conhecerão que “Eu sou o Senhor”. Deus fará isso por Seu próprio Nome, por isso o povo pode confiar, e de novo reconhecer a presença de Deus junto do povo no Exílio. Deus não se manifesta somente no Templo e na Cidade Santa, Jerusalém. Deus está sempre junto de seu povo e sua ação é continuada na história. Assim como caminhou com seu povo no deserto, Deus está presente no Exílio da Babilônia. Livre dos maus pastores e guias falsos, o povo reencontrará a paz e a prosperidade sob a proteção do único e bom pastor: o Senhor. Ele reconduzirá seu povo à sua terra e lhe devolverá a alegria de viver.
Há uma esperança para o povo
Pois, o Senhor não permitirá que seu Nome seja profanado, desprezado (Ez 36, 22.32). Isso acontecerá em três etapas: a) o Senhor vai libertar o povo do Exílio (Ez 36,24.37); b) Ele vai purificar o seu povo com uma água pura (Ez 36,25); c) o Senhor vai mudar o coração de pedra num coração de carne. Para os anciãos, o coração é a sede da inteligência. Um coração de pedra é aquela pessoa incapaz de compreender, que não escuta, que se fecha e não enxerga nada de novo. A pessoa, dotada de um coração novo e de um espírito novo, torna-se uma nova criatura (cf. Ez 37,1.14). Com isso as nações conhecerão que o Deus de Israel é mais forte que o deus dos babilônios, que Javé é o verdadeiro Deus.
Mas isso exigirá que o povo coloque em prática as leis e os costumes do Senhor. Trata-se de dar ouvidos a Deus. Ouvir Sua palavra e colocá-la em prática. Assim será restabelecida a Aliança e o povo poderá ver novamente a fertilidade de seu país, reconstruirão as cidades, recuperarão a terra, a amizade de seu Deus e será possível viver em paz.
A releitura de Ezequiel nos aponta a necessidade de uma Animação bíblica da vida e da pastoral. Ou seja, que nós e nossas comunidades tenhamos a Palavra de Deus como a primeira e principal fonte de vida. Fazer da Sagrada Escritura a “alma da missão evangelizadora da Igreja” (CNBB, Doc. 97, n. 32). Que toda a Igreja encontre na Palavra de Deus “a alma, a fonte, a seiva que nutre a sua vida, a sua espiritualidade e a sua missão” (CNBB, Doc. 111, n. 279). A exemplo de Ezequiel devemos fazer da Palavra de Deus nosso alimento: “coma esse rolo, e depois vá levar a mensagem à casa de Israel [...]. Eu comi e pareceu doce como mel para o meu paladar” (Ez 3,2-3). Só pode ser verdadeiro mensageiro de Deus quem se alimenta da Palavra e é capaz de ouvir o Espírito e se deixar guiar por Ele. Sem isso não há profecia na Igreja.
A exemplo de Ezequiel, precisamos ser “sentinelas da vida” e para isso, é necessário acordar a profecia na Igreja, despertar o espírito profético em nossas comunidades. Profetas e profetizas são homens e mulheres que que não se calam diante da injustiça, da violência, da opressão. Pessoas que, guiadas pelo Espírito de Deus, ajudam o povo a voltar para Deus e perseverar no projeto do Reino de vida, paz e esperança para todos. Sentinelas da vida e da esperança que, sensíveis à dor e ao sofrimento do povo, captam a vontade de Deus, tornam-se porta-vozes da Palavra de Deus e, com ousadia, denunciam as injustiças e anunciam a boa nova do Reino.
Temos a missão de acordar a profecia no seio da Igreja. O trabalho de Dom Hélder Câmara, em nome de Deus, foi o de defender o direito de todos os povos, sobretudo dos pobres, bem como o direito da natureza. Dom Hélder testemunhou que o projeto de Deus no mundo é a Comunhão, a Justiça e a Paz. E dias antes de morrer, ele disse a Marcelo de Barros, monge beneditino: “Não deixe cair a profecia!”. Eis a nossa missão como “sentinelas da vida”.
Para aprofundamento: Que sinais da quebra da Aliança com Deus ainda vemos em nossa sociedade? Como “sentinelas da vida”, o que devemos fazer diante dessa realidade?
Este texto é parte de um estudo dirigido produzido para aprofundar o tema do mês da Bíblia 2024.
Denilson Mariano
F/ IA
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08 maio 2025