Por Pe. Jaldemir Vitório SJ
O Papa Leão XIV brindou-nos na festa litúrgica de São Francisco de Assis com a belíssima Exortação Apostólica Dilexi te, sobre o amor para com os pobres. Texto de meditação e interiorização obrigatórias para quem deseja, neste mundo marcado pelo egoísmo, distinguir-se como discípulo e discípula de Jesus de Nazaré, na contramão do sistema socioeconômico gerador de empobrecimento, exclusão e marginalização concomitantes à concentração de bens e ao consumismo despudorado.
A condição de missionário em terras peruanas, com sensibilidade evangélica, permitiu-lhe ser pastor entre os pobres e marginalizados e exigiu-lhe abraçar a opção preferencial pelos pobres como imperativo da fé em nosso continente, tão bem formulada pela Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Puebla (1979), fazendo eco a Medellin (1968). O Santo Padre chama à nossa consciência cristã um tema que perpassa toda a vida da Igreja, desde os seus albores, fazendo um percurso histórico bem didático, onde se percebe que tantos cristãos e cristãs, ao longo de milênios, têm sido exemplares no seguimento do Jesus pobre no serviço aos mais pobres. Muitas ordens e congregações religiosas foram fundadas para o serviço dos pobres, com seus múltiplos rostos e realidades. Na mesma linha, está a Doutrina Social da Igreja, nas trilhas abertas pelos Santos Padres e pelo Magistério Papal sempre atentos à sorte dos preferidos de Deus, com quem Jesus de Nazaré se identificou: “tudo o que fizestes a um desses meus irmãos mais pequenino, a mim o fizestes” (Mt 25,40).
Dentre tantos outros, o Papa recorda o testemunho do diácono São Lourenço (séc. III) que, no contexto das severas perseguições do Imperador Valeriano, exercia a diaconia como serviço aos mais pobres, embora as comunidades cristãs de Roma fossem pobres. Forçado pelos algozes a entregar-lhes os “tesouros” da Igreja, de onde pensavam tirar o que repartia com os necessitados, levou consigo os pobres com quem se solidarizava e lhe disse: “estes são os tesouros da Igreja”. Leão XIV retoma o comentário de Santo Ambrósio (sec. IV), a respeito do gesto de São Lourenço: “que melhores tesouros teria Cristo do que aqueles nos quais Ele mesmo disse que estava?” (nº 38).
Outro paradigma de amor consolidado aos pobres encontra-se na vida exemplar de Santa Dulce dos Pobres, bem conhecida entre nós. “O anjo bom da Bahia” “encarnou o mesmo espírito evangélico com feições brasileiras […] e enfrentou a precariedade com criatividade, os obstáculos com ternura, a carência com fé inabalável” (nº 78). Do atendimento inicial aos doentes num galinheiro, nasceu “uma das maiores obras sociais do país”, onde os pobres, sem qualquer distinção ou discriminação, são atendidos quotidianamente com compaixão misericordiosa. De Lourenço a Dulce e para além, a verdadeira Igreja de Cristo, em meio a toda sorte de adversidades, segue a trilha aberta pelo Mestre de Nazaré em seu amor pelos pobres!
Lendo a Exortação Apostólica e me deixando questionar, veio-me à mente um versículo do profeta Oseias, que está na origem da teologia bíblica da misericórdia, a teologia do amor de Deus: “quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho” (Os 11,1). Tantas vezes ensinei, comentei, preguei e escrevi sobre esse versículo. Pareceu-me que o texto do Papa corresponde a uma leitura cristã desse texto do séc. VIII a.C., quando o profeta intuiu que Deus é amor e amor para com os pobres. Não amor abstrato, antes amor bem focado! Tratava-se do Israel oprimido pela prepotência do faraó, a ponto de ser eliminado, privado de proteção e deixado à própria sorte. Em outras palavras: povo indefeso em extrema pobreza! O autor do Livro do Deuteronômio (séc. VI a.C.) constata a motivação da iniciativa divina: “se Deus se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso de todos os povos, pelo contrário, sois o menor dentro os povos, e sim por amor a vós!” (Dt 7,7-8). Por conseguinte, nos primórdios da teologia bíblica, de onde Jesus de Nazaré hauriu sua fé misericordiosa, encontra-se o Deus cheio de amor para com os pobres e indefesos, a quem se dispõe libertar da opressão e conduzir à terra da fraternidade. Para o profeta, Deus disse ao Israel massacrado pela tirania egípcia: “eu te amei”; e tomou o partido dele.
Ligando o “eu o amei” de Oseias, que fala do amor de Deus nos primórdios da história de Israel, com o “eu te amei” que inicia a Exortação Apostólica, tirado do Livro do Apocalipse 3,9, colocado na boca do Ressuscitado que fala à comunidade cristã de Esmirna, para incentivá-la a perseverar na provação, podemos concluir que o amor está na base de toda a história da salvação, do começo ao final. Sempre amor pelo pequeno, pelo oprimido, pelo marginalizado, pelo descartado, enfim, pelos pobres. Deus amou Israel quando era vítima da opressão egípcia. Porém, amou os pobres, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, quando a injustiça campeou no interno do Povo de Deus, de modo especial, ao longo da monarquia. Então, coube ao profeta Oseias proclamar: “em ti (Javé) o órfão encontra misericórdia” (Os 14,4). Ao Israel pobre e humilhado pela deportação babilônica, Deus assegurou pelo profeta Isaías: “por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito; não se compadecerá do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti. Eis que te gravei nas palmas da mão” (Is 49,15-16). Quando um grupo de deportados volta para Jerusalém e, de novo, os arrogantes cometem iniquidades contra quem se esforçava por caminhar na justiça, Deus toma o partido dos pobres e oprimidos, nas palavras do profeta Malaquias: “eu terei compaixão deles, como um homem tem compaixão de seu filho que o serve” (Ml 3,17).
O modo de proceder do Deus de Israel foi abraçado nas ações e nas palavras de Jesus de Nazaré. Detenhamo-nos na catequese do evangelista Lucas, tomando alguns poucos exemplos. O Mestre amou “a numerosa multidão de cobradores de impostos e outras pessoas (=pecadores)” presentes na grande festa dada por Levi, que se tornara discípulo (Lc 5,29-32). Amou a viúva que perdeu o filho único, seu arrimo, e o levava para ser sepultado (Lc 7,11-17). Amou a pecadora que adentrou a casa do fariseu Simão para lhe demonstrar gratidão pelo bem (não se sabe qual foi!) recebido do Mestre (Lc 7,36-50). Amou a mulher com hemorragia e a adolescente, filha de Jairo, chefe da sinagoga, agraciadas com o dom da cura e da vida (Lc 8,40-56). Amou a mulher encurvada, reerguida para estar como todo ser humano deve estar (Lc 13,10-17). Amou os leprosos, dando-lhes a graça de se verem livres da marginalização causada pela doença (Lc 17,11-19). Amou Zaqueu ao livrá-lo da submissão ao deus dinheiro e fazê-lo solidário com os pobres (Lc 19,1-10). Enfim, por amor, perdoou todos os agentes de sua morte de cruz e sua situação de abandono (Lc 23,34). Em duas parábolas exclusivas de Lucas, o “eu te amei” serve como pano de fundo. O samaritano que se desdobra em cuidados pelo indivíduo semimorto, vítima de assaltantes desalmados, dá mostras de amor radical pelo desconhecido, sem se poupar (Lc 10,29-37). O pai misericordioso, no trato com o filho tresloucado, segue na mesma direção com seu gesto de amor radical. Ao avistar o filho de regresso, corre-lhe ao encontro, lança-se-lhe ao pescoço e cobre de beijo aquele ser asqueroso, com catinga de porco… por amor (Lc 15,11-32). O samaritano e o pai agem por amor, no trato com o desconhecido violentado e com o filho reduzido a um traste. Duas imagens do próprio Jesus! “Amei-te” torna-se chave para compreender todo seu ministério. O amor extremado do Deus de Israel pelos pobres foi levado adiante pelo amor radical do Mestre de Nazaré. E se mantém vivo e operante na compaixão dos discípulos e das discípulas do Reino, misericordiosos e solidários com os últimos de nosso mundo.
O Papa Leão XIV pretendeu, tão só, apontar-nos os bons caminhos de Jesus, pois o amor é o rosto da fé e a fé verdadeira só pode se expressar como caridade (nº 29); “só o amor é digno de fé”, nas palavras de um célebre teólogo. E o fez indicando o imperativo do amor que merece o nome cristão: “o amor para com os pobres”. Afinal, só o amor para com os pobres é digno de fé. Eis porque afirma: “se não quisermos sair da corrente viva da Igreja que brota do Evangelho e fecunda cada momento histórico, não podemos esquecer os pobres” (nº 15).
Num momento em que muitos cristãos e cristãs se afastam do bom caminho do amor aos pobres e se deixam aliciar por ideologias religioso-políticas enviesadas, bem como pela cultura que, sob muitos aspectos eivada de antirreino, os vitimiza e exclui, torna-se imperioso voltar à verdade sempre nova do amor para com os pobres. Com Deus e com Jesus de Nazaré digamos, em relação aos pobres: “dilexi te”, e partamos para a ação, “para o fazer com urgência […] que não pode esperar” (nº 91.94)!
O Papa Leão XIV pretendeu, tão só, apontar-nos os bons caminhos de Jesus, pois o amor é o rosto da fé e a fé verdadeira só pode se expressar como caridade (nº 29); “só o amor é digno de fé”, nas palavras de um célebre teólogo. E o fez indicando o imperativo do amor que merece o nome cristão: “o amor para com os pobres”. Afinal, só o amor para com os pobres é digno de fé.
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