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Quando o cristão comemora a morte, o Evangelho se cala

Por Dom Luiz Fernando Lisboa

Dom Luiz Fernando Lisboa
Arcebispo de Cachoeiro de Itapemirim (ES)

O recente confronto policial no Rio de Janeiro, que deixou mais de cem mortos, escancarou uma ferida antiga do Brasil: a banalização da vida. Diante de tanta violência, muitos se calam. Outros, pior ainda, comemoram. Mas o discípulo de Cristo não pode aplaudir a morte de ninguém. Quando a sociedade celebra o sangue derramado, o Evangelho se cala — e com ele morre um pouco da nossa humanidade. 

A Igreja, desde os primeiros séculos, ensina que a vida humana é dom de Deus, e que ninguém tem o direito de destruir o que pertence ao Criador.2  

A indiferença diante da morte, especialmente quando celebrada, é o sintoma de uma fé adoecida e de uma espiritualidade atrofiada. 

A fé cristã não negocia a dignidade. Cada pessoa — inclusive quem errou, quem caiu, quem se perdeu — é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). Toda morte é uma perda para a humanidade, não uma vitória.  

Jesus não festejou a queda dos pecadores; A fé verdadeira chora as mortes e luta para que não se repitam. 

A Igreja não se omite, mas também não se alegra com a destruição do outro. Evangelizar é defender a vida sempre — até o último sopro.3  

O Papa Leão XIV recordou recentemente que “não se pode ser contra o aborto e, ao mesmo tempo, defender a pena de morte: a coerência evangélica exige uma ética integral da vida”.4  Essa afirmação ecoa a tradição doutrinária que sempre colocou a vida humana — em qualquer estágio ou condição — como bem inviolável e absoluto. 

A justiça é necessária, mas sem misericórdia, ela se torna vingança. O Papa Francisco recorda que “nenhuma paz é duradoura quando se constrói sobre o sangue dos irmãos”5. A verdadeira justiça quer restaurar, não eliminar. Defender a vida não é proteger o crime, mas reafirmar que o mal se vence com o bem (Rm 12,21). A segurança pública precisa caminhar junto com a inclusão social, a educação, a escuta e o cuidado. 

A paz nasce da justiça, mas só floresce com a misericórdia. A misericórdia não é fraqueza, mas força moral e espiritual capaz de desarmar os corações. Como ensina  São João Paulo II: “A justiça sozinha não basta; é preciso que o amor se torne mais forte que o pecado.”6 

Vivemos uma cultura que confunde justiça com vingança e ordem com violência. Nas redes sociais, as tragédias viram torcida; o sofrimento alheio, espetáculo. Evangelizar hoje é mudar essa lógica. Torna-se cada vez mais necessário evangelizar a cultura dominante para que aconteça a revolução da compaixão. A cada a dia somos chamados, como Igreja, a formar corações compassivos, que saibam sentir antes de julgar, cuidar antes de condenar.  

A prevenção — na saúde, na educação, na segurança — é a nova revolução cristã: a revolução de quem cuida antes que o mal aconteça, de quem estende a mão antes que o outro caia.  Como já alertava Leão XIII, “a sociedade se desintegra quando o amor deixa de ser a medida das relações humanas”7. Evangelizar, portanto, é reintroduzir o amor como critério social e espiritual. 

Ser cristão é acreditar que a vida tem sempre a última palavra. Diante da violência e do ódio, o Evangelho nos convida à conversão do olhar: a trocar a indiferença pela solidariedade, a vingança pela compaixão, a comemoração da morte pela promoção da vida. Em Mateus 5,9 lemos: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.”  

 Em tempos de morte e celebração do ódio, o cristão é chamado a ser voz de ternura. Quando o mundo aplaude a destruição, o Evangelho nos envia a reconstruir. Essa é a verdadeira revolução da fé: cuidar da vida, sempre. Como nos alertou o Papa Francisco: “Quando você comemora a morte de alguém, o primeiro que morreu foi você mesmo.”8 

Referências 

JOÃO PAULO II, Papa. Evangelium Vitae. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1995. §53. 

CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes. Vaticano, 1965. §27 

LEÃO XIV, Papa. Discurso aos Representantes das Igrejas e Religiões sobre a Ética da Vida. Vaticano, 22 jun. 2025. In: AP News, “Pope Leo XIV says pro-life means rejecting death penalty too”, 23 jun. 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/0359c6953303524e5d2387d61e53f474 

FRANCISCO, Papa. Mensagem para o Dia Mundial da Paz. Vaticano, 1 jan. 2020. 

JOÃO PAULO II, Papa. Dives in Misericordia. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1980. §12. 

LEÃO XIII, Papa. Rerum Novarum. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1891. §23. 

FRANCISCO, Papa. Homilia na Missa em Santa Marta. Vaticano, 19 abr. 2016. 

Fonte: CNBB

 

 

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