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Censo 2022: pontos para um exame de consciência cristão

Por Pe. Jaldemir Vitório SJ

No início de junho deste ano, o IBGE divulgou os dados do Censo 2022 referentes ao perfil religioso do nosso país. Dentre o esperado, está a diminuição do número dos que se declaram católicos (56,7%) e o avanço dos evangélicos (26,9%). Outras religiões correspondem a pequena parcela de brasileiros. Como novidade, o percentual de crescimento evangélico não correspondeu ao previsto, considerando-se a tendência desde 1960.  Cresceu o número dos sem religião (9,3%), fato constatado em Censos anteriores. Em 2010, eram 7,9% da  população.

Com o aumento dos adeptos das religiões afro-brasileiras (1%), a leve diminuição da religião espírita (1,8%) e a presença do judaísmo, do islamismo, de religiões orientais e tantas outras, percebe-se o pluralismo religioso praticado no território nacional. Apesar de a Constituição Federal (Art. 5º, inciso VI) garantir a liberdade religiosa e o respeito às diferentes crenças, os episódios de intolerância religiosa, em aberto desrespeito à Carta Magna, multiplicam-se, a ponto de se criar o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro,  e o Disque 100, para receber denúncias de violações do direito de expressar a própria fé, sem importunações.

Com esse pano de fundo, proponho um discernimento cristão em torno da progressão persistente dos que se declaram sem religião. Em sua maioria são homens (56,2%), numa faixa etária que varia de 20 a 24 anos. Aqui se incluem ateus, agnósticos, pessoas com espiritualidade sem vinculação com uma religião específica e os chamados “desigrejados”, tanto católicos quanto evangélicos, número em franco avanço.

As perguntas com as quais devemos nos confrontar soam assim: por que o projeto de Jesus de Nazaré não consegue encantar tantas pessoas do século XXI? Qual a raiz da desilusão e a decepção com nossas Igrejas? Em que devemos nos corrigir, enquanto discípulos e discípulas de Jesus de Nazaré, para que nossas Igrejas continuem a atrair as pessoas para o Projeto Cristão, com o encanto dos inícios? Por ocasião da Conferência de Aparecida (2007), o Papa Bento XVI fez uma afirmação lapidar, gravada em minha memória, retomada pelo Papa Francisco, em várias ocasiões: “a Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por ‘atração’: como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu amor, que culminou no sacrifício da cruz”. O Papa atualizou Jo 13,35, onde Jesus declara: “se vocês tiverem amor uns pelos outros, todos vão reconhecer que vocês são meus discípulos”. At 2,47 narra que “a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade aqueles que eram salvos”, porque “tinham tudo em comum e repartiam entre todos, conforme a necessidade de cada um” e, por isso, “eram estimados por todo o povo” (At 2,42-46). O apóstolo Paulo pode ser considerado exemplo de fariseu fanático que aderiu ao movimento de Jesus de Nazaré, deixando de lado o apego inflexível à Lei Mosaica, que o levou a perseguir as nascentes comunidades cristãs, como ele mesmo confessa (1Cor 15,9). E o fez descobrir no movimento de Jesus um estilo de vida superior ao que vivia nos ambientes farisaicos. O hino ao amor (agápe – 1Cor 13,1-13) revela o ponto aonde chegou. Igualmente se pode falar do evangelista Lucas, grego de origem, seguramente, com sua religião familiar. Ao ter contato com os missionários cristãos, foi tocado, chegando a produzir para sua comunidade uma catequese belíssima em torno da pessoa de Jesus de Nazaré, com parábolas que expressam, com total acerto, o projeto cristão. Pense-se na parábola do bom samaritano (Lc 10,29-27) ou na parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32) e outras páginas memoráveis de seu evangelho!

O modo de proceder dos primeiros discípulos de Jesus cativou tanto judeus, acabrunhados pelo legalismo farisaico, quanto romanos, às voltas com a opressão das lideranças, a começar pelo imperador, respaldadas pelas inúmeras divindades do seu panteão. Contaram-me a história de um missionário jesuíta europeu, no século passado, às voltas com a preparação de um catecúmeno japonês para o batismo. Após um ano de inútil tentativa de lhe ensinar a “doutrina cristã”, o missionário lhe disse ser impossível lhe conceder o batismo, por não ter compreendido dogmas como o mistério da Santíssima Trindade, a transubstanciação da hóstia no Corpo de Cristo, a concepção virginal de Jesus e outros. O catecúmeno budista, então, retrucou: “eu quero ser batizado para ser como vocês!” Não lhe interessavam dogmas e doutrinas e sim o estilo de vida fraterno da comunidade cristã, o cuidado de uns pelos outros, o ethos superior ao que se percebia na sociedade. Em suma, atraia-o e lhe importava o modo de proceder de alto nível dos cristãos.

Os dados do Censo devem questionar nosso modo de proceder, por meio de acurado exame de consciência. Converter pessoas para nossas Igrejas servindo-se do proselitismo, das estratégias de marketing e propaganda, da criação de igrejas à la carte, adaptadas ao gosto da freguesia, está longe de levar as pessoas a fazerem uma autêntica experiência de discipulado cristão. Que pensar do recurso à teologia da prosperidade para atrair fiéis? Da mesma forma, a teologia do domínio, com a qual se inculca na cabeça dos membros de certas igrejas que o estabelecimento do Reino de Deus na terra, passa pelo controle religioso – teocracia – de todas as áreas da sociedade, sem qualquer exceção, desde a economia, a educação e a cultura, até o poder político, a ser exercido por “cristãos” missionados para deixar de lado a Constituição e se pautar pela Lei bíblica, lida e interpretada pelos parâmetros deles. Tal tendência está em alta em nosso país, incentivada por grupos neopentecostais, mancomunados com partidos políticos, atrelados a movimentos de extrema-direita espalhados pelo mundo.

O equívoco de certas anomalias cristãs espalha-se noutras direções. Encontra-se nos autodenominados conservadores, tradicionalistas, defensores da “verdadeira Igreja” entendida dentro de seus estreitos parâmetros; nos propagadores de devoções aleatórias e igrejas de massa cujos adeptos se contentam com discursos de autoajuda tidos na conta de mensagem evangélica; nos influencers religiosos transformados em ídolos, adorados e cultuados com suas idiossincrasias; no liturgismo estéril movido por celebrações meticulosamente preparadas, com os “sacerdotes” e seus paramentos riquíssimos, nos quais investem rios de dinheiro; nos cultos espetaculosos e barulhentos, semelhantes a shows de música pop. No âmbito do catolicismo, chama a atenção o clero jovem mal formado e desmotivado, sem criatividade missionária, tendente ao narcisismo, desprovido de ardor evangélico e de compaixão para com os últimos do nosso mundo. Os leitores e as leitoras com senso crítico cristão, a partir de suas experiências, podem alargar a lista de motivos para afastar os fiéis de boa-vontade de nossas igrejas e, por outro lado, torná-las insignificantes para quem busca sentido para a vida, os que “sentem fome e sede de Deus”, os que “têm saudade de Deus”, ansiosos por encontrar luz para sua caminhada.

Bento XVI, com sua sensibilidade artístico-musical, acreditava que não são os métodos agressivos que atrairão pessoas para nossas igrejas e, sim, “a beleza da fé” que se manifesta na vida dos fiéis. O Papa Francisco insistiu no tema da alegria, em suas falas e em seus escritos. Em sua autobiografia (2025) aparece com força a esperança.

Um canto penitencial bem conhecido pede perdão a Deus por “quem não te aceita, quem te rejeita, por ver cristãos que vivem mal”. O Censo 2022 nos leva a colocar a mão na consciência, admitir nossas falhas pessoais e as de nossas Igrejas e nos perguntar em que devemos nos converter, de modo que nossas comunidades eclesiais se tornem espaços de sentido para seus membros e atrativas para quem anseia por encontrar razão para viver.

Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Fonte: FAJE

 

 

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