No Brasil cresce, não sei se em outros países existe essa prática religiosa, o chamado “cerco de Jericó”. A que se refere? A uma devoção ancorada em um episódio do Antigo Testamento, relatado no Livro de Josué. Nesse relato, Josué e os israelitas tomam a cidade de Jericó. Deus é quem entrega essa cidade ao poder dos israelitas que, por sua vez, matam seus cidadãos, não poupando nem homens, nem mulheres, nem crianças nem velhos, nem mesmo animais (Js 6,21). Segundo o texto, apenas a prostituta Raab, que havia escondido os espiões dos israelitas, foi salva com toda a sua família e seus pertences (Js 6, 22-23). Depois de terem matado todos os habitantes, queimaram a cidade e confiscaram o ouro e a prata (Js 6, 24).
O último cerco
O interessante da história é que Deus teria mandado realizar, ao longo de sete dias, cercos a essa cidade. No último dia a cidade seria cercada por sete vezes e após o último cerco, ao som das trombetas dos sacerdotes e do grito de guerra dos soldados, as muralhas da cidade cairiam e a mesma seria entregue aos israelitas (Js 6, 3-5). Logo, Deus entrega essa cidade aos israelitas e “chancela” o genocídio cometido pelo povo eleito. Uma expressão da piedade religiosa da época (e de muitos hoje).
Obviamente que, uma pessoa com as faculdades mentais normais e atualizadas no século XXI, não poderia aceitar uma imagem de Deus de acordo com o relato supracitado. Que deus é esse que manda assassinar crianças inocentes? Felizmente, como cristãos, lemos todo o Antigo Testamento através de um critério hermenêutico fundamental que é Jesus de Nazaré. Tudo o que está presente, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, deve ser interpretado pelo critério fixado no Evangelho: Deus se fez homem por um incondicional amor à humanidade. Logo, a sentença presente no Livro de Josué deve ser entendida como uma interpretação nacionalista de religião, em que Deus é usado como instrumento justificador de poder.
O “cerco de Jericó”
No entanto, apesar de sabermos disso, cresce essa devoção pentecostal católica chamada “cerco de Jericó”. Deus é aclamado como Aquele que outrora derrubou as muralhas de Jericó e agora derruba as “muralhas” existenciais das vidas dos fiéis. Tudo se faz com muita imaginação, teatralidade e até com instrumentalização da Eucaristia, que de pão partido para a vida dos homens, passa a ser usado como objeto mágico de poder. Pura superstição religiosa, tudo o que Jesus desprezou à sua época!
Porém, o mais preocupante não é a sandice presente nesse teatro religioso, mas sim a incapacidade do clero de perceber o quão perniciosa é essa mistura de Antigo Testamento com a prática da comunidade cristã. Apela-se ao Antigo Testamento sem que se faça uma exegese madura dos textos. Simplesmente se adapta Jesus à imagem de Deus presente no Livro de Josué. Isso é uma heresia! Somente Jesus de Nazaré é a imagem visível do Deus invisível, todas as demais ideias teológicas que foram sendo forjadas ao longo dos séculos tornam-se caducas ou devem ser completadas em de Jesus. Como repete constantemente um biblista italiano, Pe. Alberto Maggi, “não é Jesus que é como Deus, mas é Deus que é como Jesus”, ou seja, Jesus não deve se adaptar às imagens precedentes presentes na religião judaica, mas são essas imagens e ideias que devem ser revistas a partir dEle.
Nesse sentido o cerco de Jericó é uma miscelânia religiosa de emoção, teologia pentecostal e pouca clareza exegética que institui literalmente um circo religioso. Esse cerco de Jericó, como já dizem alguns, é um circo, que manifesta claramente a fé religiosa no formato de um espetáculo. Infelizmente, como tem espectadores, paróquias e dioceses o montam para atrair fiéis e arrecadar dinheiro. A grande questão que fica em aberto é: que evangelização é essa? Isso passa pelo critério Jesus de Nazaré ou essa questão é irrelevante? Talvez não tenhamos ainda percebido que ao invés de discípulos essas devoções estão apenas criando fãs.