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14/07/2021 Boaventura de Sousa Santos Edição 3938 O futuro começa agora
F/ Sala de imprensa CES
"Na viagem que empreendi até às últimas estações do sofrimento injusto, do abandono, da exclusão e da invisibilidade, foi possível conhecer resistências comunitárias, iniciativas tão criativas quanto indignadas para minorar o sofrimento. "

 

Com o título acima o novo livro do sociólogo, prof. e diretor emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra - um livro escrito “entre o medo e a esperança, tal como um e outra nos confrontam no início do século XXI”, diz, de que antecipamos excertos do prefácio e das conclusões. O volume, de 544 pp. (Edições 70 - grupo Almedina) lançado simultaneamente no Brasil e na Espanha, depois na Itália e nos EUA (pela Routledge, considerada a maior editora mundial de ciências humanas e sociais, que já publicou outros livros seus), o que mostra a projeção internacional da obra deste autor, distinguido com prêmios e doutoramentos “honoris causa” em várias latitudes.

Uma memória do futuro

A pandemia do novo corona vírus destemperou os tempos individuais e coletivos. Os privilegiados que puderam continuar a trabalhar por meio de teletrabalho fecharam-se em casa, paradoxalmente, para se sentirem menos fechados. E trabalharam ainda mais intensamente. Talvez por isso nunca escrevi um livro tão rapidamente como este. Escrever sobre a pandemia enquanto ela ocorria significou que o livro me foi escrevendo à medida que eu o ia escrevendo. Escrevemo-nos um ao outro, o que não admira, porque os temas que eu tratei neste livro, além de novos, tocavam os limites das incertezas existenciais que avassalavam tanto o sociólogo como o cidadão. [...]

É um livro diferente de quantos tenho escrito porque pretende ser uma memória do futuro. Há nele algo de autópsia social e algo de parto inaugural. De uma maneira muito cruel, o corona vírus abriu as veias do mundo, para parafrasear a belíssima expressão de Eduardo Galeano. Permitiu-nos ver as entranhas de muitas monstruosidades que habitam o nosso quotidiano e nos seduzem com os disfarces que, de tão comuns, tomamos por normalidade.

O corona vírus fez cair muitos desses disfarces e produziu um efeito de esventramento (uma forma de execução com tortura que consiste em abrir o ventre da vítima e extrair seus órgãos internos). Este livro procura identificar e denunciar algumas das dimensões de tal esventramento. Na viagem que empreendi até às últimas estações do sofrimento injusto, do abandono, da exclusão e da invisibilidade, foi possível conhecer resistências comunitárias, iniciativas tão criativas quanto indignadas para minorar o sofrimento. Este lado indignado e insubmisso da realidade, ao mesmo tempo que cuidava das feridas, convocava a imaginar a possibilidade de um mundo diferente daquele que a pandemia vinha anunciar se nada fosse feito para mudar de curso, um mundo infernal de pandemias intermitentes. [...]

A força de devastação do vírus

O livro está dividido em duas partes. Na primeira parte, procuro dar uma visão tão panorâmica quanto possível da devastação causada pelo corona vírus, da história longa que o precedeu, das causas que determinaram o modo como escolheu as suas vítimas privilegiadas, das consequências que daí advieram, das atuações dos Estados e das comunidades frente a um perigo de dimensões imprevistas.

No capítulo 1, dou algumas pistas para inserir a novidade do vírus na nossa contemporaneidade. No capítulo 2, mostro que essa novidade é mais aparente do que real, já que o vírus é um fator importante da época moderna. No capítulo 3, analiso o modo como o capitalismo fez da pandemia o que tem feito da vida humana e da natureza: transformá-la num negócio. No capítulo 4, procuro desmontar a ideia, por muitos avançada, da democraticidade do vírus e analisar, com detalhes que podem exasperar alguns leitores, o modo como o vírus agravou cruelmente as desigualdades e as discriminações de que são feitas as sociedades contemporâneas. No capítulo 5, submeto a uma análise crítica um dos dois protagonistas reconhecidos do processo pandêmico, o Estado. Questiono o modo como o Estado, chamado a proteger a vida dos cidadãos, respondeu à chamada. No capítulo 6, centro a minha atenção no outro protagonista reconhecido do processo pandêmico, o conhecimento na sua imensa diversidade e a ciência muito em especial. Finalmente, no capítulo 7, debruço-me sobre um protagonista não reconhecido, a resistência e a criatividade das comunidades para proteger vidas, muitas vezes perante o abandono do Estado e inacessibilidade dos benefícios da ciência biomédica.

Começo de uma nova época

Na segunda parte, disponho-me a dar credibilidade à ideia de que o século XXI pode ser um começo de época, uma nova época assentada na ideia de que a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza. As implicações que daí decorrem são as linhas da longa transição para um novo modelo civilizacional pós-capitalista, pós-colonial e pós-patriarcal. No capítulo 8, identifico os três cenários principais que se desenham no horizonte pós-pandêmico. No capítulo 9, opto por um dos cenários, aquele que aponta para uma mudança de época, para um novo modelo civilizacional assente no primado da vida digna e numa relação com a natureza radicalmente diferente da que mantivemos na época moderna e nos trouxe à beira da catástrofe ecológica e a um mundo distopicamente viral. No capítulo 10, identifico os princípios que devem presidir ao processo mais ou menos longo de transição paradigmática, do modelo civilizacional atual para o que aponto no capítulo 9. Finalmente, no capítulo 11 enumero os primeiros passos desse processo de transição. O livro termina com uma conclusão que reflete o caráter especial deste livro ao ser escrito enquanto a pandemia segue o seu curso e não deixa de surpreender os analistas.

Um empreendimento de alto risco.

As incertezas criadas pela pandemia desafiavam, pelo seu âmbito e pelo modo como enfrentavam as estruturas sociais, econômicas e políticas do início do século XXI, as capacidades de intervenção e de análise da ciência no seu conjunto e, portanto, também das ciências sociais. Apesar disso, a partir do final de Agosto de 2020 a pandemia, que continuava ativa na sua capacidade de destruição, parecia não oferecer grandes novidades no modo como operava e como desafiava os obstáculos que encontrava. O desafio que ela apresentava a este livro ocorreria mais no domínio empírico dos dados do que no quadro analítico que desenvolvi para os analisar.

As surpresas ocorriam… sem surpresa. Por exemplo, a relação entre a capacidade da pandemia para destruir vidas e as desigualdades e discriminações sociais que lhe preexistiam mantiveram-se inalteradas (capítulo 4). Correspondentemente, não se alteraram e antes se tornaram mais visíveis os modos como, em meio de uma crise econômica que se agravava em resultado da pandemia, certos sectores do capital transformavam a pandemia num bom negócio e acumulavam riqueza sem limites (capítulo 3). Por sua vez, as áreas da ciência e da indústria ligadas à produção das vacinas aprofundaram a tendência que assinalei para distorcer as prioridades da investigação científica em função da emergência causada pela pandemia, deixando a descoberto a investigação em todas as áreas não diretamente relacionadas com a pandemia, como por exemplo, a vacina contra o HIV-SIDA ou para controlar a malária. [...]

O agravante das notícias falsas

No momento em que escrevo (finais de Agosto de 2020) está a ser divulgado em pré-publicação um artigo em The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, sobre o impacto da infodemia na saúde pública. Os seus autores distinguiram entre boatos, estigmatizações e teorias da conspiração publicadas em plataformas online de 87 países e em 25 línguas (Md Saiful Islam et al, 2020).

A incidência de notícias falsas é particularmente grave em países como os EUA, o Reino Unido, a Espanha, a Indonésia, a Itália, a França, a Índia, a China e o Brasil. Mas está presente em quase todos os países analisados e a leitura dos tipos de boatos e de teorias da conspiração causa perplexidade. Só para dar um exemplo, o boato que ingerir álcool altamente concentrado matava o vírus circulou em vários países e terá causado a morte a 800 pessoas e a hospitalização de 5.876, tendo 60 ficado cegas. Boatos similares causaram 30 mortes na Turquia. O estudo apela às autoridades para investir mais na identificação dos boatos e das teorias da conspiração e na divulgação rápida e ampla dos fatos que os contradizem, uma das lições que crises epidêmicas anteriores já tinham destacado (cap. 6).

Da perspectiva deste livro, a partir de agora a pandemia está à solta, livre das amarras teóricas e analíticas que lhe impus. Como intelectual de retaguarda e não de vanguarda, que me orgulho de ser, se a pandemia se desenvolver por caminhos que contradizem as previsões implícitas na minha análise, não atribuirei a culpa à pandemia. Atribui-la-ei à minha teoria e aos meus quadros analíticos. Terei de os rever para poder continuar a ajudar aqueles e aquelas que durante a pandemia assumiram a defesa da vida digna e imaginaram políticas e modos de vida que no futuro nos possam defender melhor de pandemias. Foi este o propósito deste livro.

Fonte: Sala de imprensa CES

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