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02/05/2020 Frt. Dione Afonso, SDN Edição 3923 Por um mundo sem cárcere
F/ Facebook/ Aparecida Moreira Neto
"A Pastoral Carcerária continua visitando e consolando os Cristos que não têm lugar e direito à cidadania na sociedade de hoje e em nossas cidades."

Frt. Dione Afonso, SDN - dafonsohp@outlook.com

 

A cidade de Manhumirim-MG, no último mês de novembro, sediou o III Encontro Estadual da Pastoral Carcerária para Questão da Mulher Presa em Minas Gerais. Na ocasião, esteve presente a coordenadora Nacional para a Questão da Mulher Presa, Rosilda Ribeiro, no qual a Revista O Lutador entrevistou:

 Um sonho

O Lutador: Como está o trabalho da Pastoral Carcerária?

Rosilda: Com o lema “estive preso e fostes me visitar” [Mt 25, 36], a Pastoral Carcerária é uma pastoral social ligada a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – e age junto às pessoas presas e suas famílias com agentes presentes em todos os estados do país. A Pastoral Carcerária acompanha e intervém na realidade do cárcere brasileiro de forma cotidiana. Atualmente o Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo, e, o 4ª maior país do mundo que encarcera mulheres. Em contínuo e exorbitante aumento que revela a perversa política de encarceramento em massa que está em vigor no nosso país. Uma política que tem como alvo os grupos marginalizados e menos favorecidos: jovens, negros, mulheres, moradores das periferias, e das áreas urbanas socialmente mais precarizadas.

 O Lutador: Como funciona o trabalho da Pastoral Carcerária?

Rosilda: A pastoral, diante desse quadro, busca ser uma presença de Cristo e de sua igreja no mundo dos cárceres, caracterizados pela superlotação, condições insalubres e tortura sofrida pelas pessoas que se encontram privadas de liberdade. No nosso trabalho de atendimento religioso às pessoas presas, a pastoral procura oferecer um serviço de escuta e acolhimento. Anunciamos a Boa Nova de Cristo e isso contribui num processo de iniciação à vida cristã e para a vivência dos sacramentos. Também atuamos no enfrentamento de violação dos Direitos Humanos e da Dignidade Humana que ocorre dentro dos cárceres. Todo o processo evangelizador envolve a Promoção Humana, e, isso já nos lembra o Documento de Aparecida no número 299. Puebla também vem nos dizer  que “as profundas diferenças sociais, a extrema pobreza e a violação dos Direitos Humanos são desafios lançados à evangelização” [nº. 90]. É evidente que encarcerar mais pessoas, em sua grande maioria pobres e negras não diminui a violência, muito pelo contrário, o encarceramento serve para torturar as pessoas mais pobres e gerar ainda mais violência. Desde 2013, a Pastoral Carcerária e diversos movimentos e pastorais sociais lançou a agenda nacional pelo desencarceramento. É urgente e necessário que se coloque em pauta e que defenda um programa de redução da população carcerária, pois do jeito que está é inviável que continue. Temos um site: carceraria.org.br, e, nele temos um documento que diz “a pastoral visa viabilizar o desencarceramento e fortalecer as práticas comunitárias e resolução pacífica de conflitos”. Temos 10 propostas e diretrizes e essa agenda é para nós, uma profecia. Sonhamos com que o governo olhe com mais atenção e apoio para essa agenda para que cheguemos a um mundo sem cárcere. Essa é a nossa luta! É a busca do sonho de Deus, “por um mundo sem cárcere”!

 O Lutador: Qual o grande objetivo do encontro realizado em Manhumirim? Que pontos foram levantados?

Rosilda: Nós sabemos que Jesus liberta de todas as prisões e que a Palavra de Deus “eu vim para que todos tenham vida em abundância” [Jo 10, 10] nos dá esse intimado. Quando falamos de carceramento feminino, a Pastoral carcerária compreende todos aqueles que se reconhecem como mulheres, como transexuais, LGBT+ etc. O Ministério da Justiça assume que a população carcerária feminina no Brasil cresceu 698% entre 2000-2016. Essa realidade reafirma a orientação punitivista do sistema prisional. Revela a reprodução das desigualdades e opressões de gênero e precarizam ainda mais as questões de sobrevivência das mulheres que se encontram privadas de liberdade. Nos cárceres femininos, além da violência e das condições precárias comuns nas prisões masculinas as violações de direito se multiplicam. É péssimo o atendimento da saúde das gestantes, lactantes e mães. A separação bruta das mães de seus filhos e filhas. Incluindo nesse quadro as adoções à revelia. A falta de notícias desses filhos e filhas, a ausência de materiais de uso pessoal e de roupas íntimas. Por exemplo, quando você passa em frente a um presídio feminino em horário de visita e em frente a um presídio masculino no mesmo horário, há uma diferença gritante. Pouquíssimas mulheres recebem visitas. Elas vivem um total abandono da família, da comunidade, de todos. Sofrem inúmeras violações e sofrimentos, por exemplo, aquelas que visitam os que elas amam e que se encontram presas, elas se doam, elas amam, e passam por inúmeras formas de agressões e dificuldades. Vejam a revista vexatória, uma violência extrema, até o comprometimento de grande parte de suas rendas, além de serem rotuladas como “lá vai a mãe do preso”, “lá vai a esposa da cara na prisão”, elas perdem seus nomes por esses tratamentos ofensivos e discriminatórios. Rótulos que a sociedade coloca numa pessoa que ama sem limite. Sofrem rejeições todos os dias por seus parentes por terem um familiar preso. Esses foram os pontos levantados em Manhumirim-MG.

 Um sonho que pode ser seu também

 O Lutador: Como as pessoas podem ajudar mais efetivamente a pastoral?

Ir. Maria Inês: A Pastoral Carcerária continua visitando e consolando os Cristos que não têm lugar e direito à cidadania na sociedade de hoje e em nossas cidades. E, também como Maria, que é discípula missionária, visitar as Marias condenadas por um sistema excludente, cruel. Acompanhar as famílias nos exílios, aquelas que os Herodes do nosso tempo escravizam e prendem. Somos uma pequena semente de mostarda alimentando na Igreja e na história da humanidade a utopia e a profecia de novos tempos que possamos viver uma terra sem males. Nós não tiramos do Estado a sua obrigação de cuidar e olhar para as pessoas presas. No entanto, temos a consciência que se esperarmos só do Estado essas pessoas acabam sendo exiladas e impedidas de ter o mínimo como objetos de uso para higiene pessoal e roupas. Então nós mobilizamos campanhas nas igrejas, nos locais sociais pedindo o simples: absorventes, escovas de dente, creme dental, shampoo, sabonete – lembrando que o estado de Minas Gerais não oferta nem mesmo o sabonete nos presídios – tudo isso, se as pessoas no presídio têm, é por vias de doações que recebemos em nossas campanhas e em tantas outras iniciativas caridosas. As mulheres não recebem roupas íntimas, algumas unidades, por exemplo, nem por via de doações, permitem que doemos para as presas as roupas íntimas. É um grande sonho da Pastoral Carcerária que as pessoas abracem essas campanhas com a gente. As equipes locais da Pastoral Carcerária, quando realizam seus encontros, como esse que aconteceu em Manhumirim-MG, com os agentes de visitas aos presídios costumam ganhar até mesmo o combustível, pois o trabalho da Pastoral Carcerária é totalmente voluntário, tudo sai do nosso bolso e a gente faz com amor. Tentamos financiamento através de projetos que enviamos aos estados. Você, se quiser se unir a nós, entre em nosso site: www.carceraria.org.br e entenda como que é o nosso trabalho. Louvado seja Deus a cada pessoa que se sensibiliza por nossa causa e deseja unir-se a nós na luta do desencarceramento nacional.

 

É preciso um novo olhar

O Lutador: Que perspectivas se abrem a partir deste encontro?

Rosilda: A partir do encontro em que trabalhos a prisão das mulheres em específico, em nossas conversas e partilhas, que Maria também foi mãe de uma pessoa presa, torturada e morta pelo Estado. Jesus também esteve preso. A Pastoral Carcerária vem percebendo a necessidade de um trabalho específico destinado às mulheres nessas condições. Elas demandam necessidades muito específicas. Então a gente foi colocando isso em nosso coração e em nossas ações. Tudo começou na escuta com essas mulheres e seus sofrimentos. Começamos a estudar mais as leis. As pessoas que estavam no encontro em Manhumirim-MG, se sensibilizaram e viram a grande necessidade desse recorte e de cuidar dessas mulheres partindo de um novo olhar. As próprias regras falam que a mulher é parte de uma instituição familiar e constitui a educação e vivência de filhos e filhas. Falamos de uma substituição de presídio para albergue familiar, tudo voltado para um cuidado da mulher e da criança que precisa da mãe. Olhamos a mulher enquanto mulher, e não como a sociedade a vê: uma pessoa em dívida com a lei. Se uma mulher se encontra privada de liberdade e precisa de um atendimento no SUS, seu agendamento deve ser feito igualmente com quem não está nessa condição. Isso são políticas públicas voltadas para o cidadão brasileiro estando em presídios ou não. Falamos do preconceito do Poder Judiciário que não procura a mãe, a mulher, a pessoa antes de dar a sentença. Eles não têm a sensibilidade de olhar para ela como mulher, com olhar preconceituoso. O Judiciário não se sente obrigado em cumprir a obrigatoriedade da amamentação dos filhos, e nem a presença da mãe na vida dele. A lei da amamentação não é cumprida. Pré-Natal, parto seguro, acompanhante na sala de parto, uso de algemas enquanto se dá à luz... Diante desse encontro, abriu-se uma perspectiva: se começarmos a visitar o presídio feminino, diante de tantas violações. Em Bicas, visitamos as prisões com LGBT, e trata-se de um presídio para abrigar esse grupo de pessoas, isso é cruel, desumano e nada evangélico. Esse não é um lugar de gente, não é um lugar de crianças, mulheres, não é lugar de ninguém. A partir desse encontro, abre-se a oportunidade de olhar para essas pessoas no cárcere com um novo olhar.

 O Lutador: Que contribuição a CF-2020 pode dar a esse trabalho da Pastoral Carcerária?

Rosilda: O tema “Fraternidade e Vida, Dom e Compromisso” como lema do Bom Samaritano, nos convida a ver, olhar, sentir, sentir compaixão, julgar com os olhos de Deus tal realidade sem condenação, e cuidar, é a ação de cada um de nós, de cada cristão. Nós, da Pastoral Carcerária vemos em nossos encontros de formação, costumamos dizer que olhar o sistema prisional é algo que vai muito além dos muros das prisões. Cada um de nós, agente, não fiquemos presos a ideia do pecado e da culpa individual. Se mantivermos esse olhar não vamos enxergar a violência da desigualdade social que cria o encarceramento em massa dos mais pobres e a reprodução da violência e da mentalidade vingativa e punitiva contrárias às práticas e aos ensinamentos de Jesus de Nazaré. A CF-2020 vem ao encontro do nosso trabalho. O olhar, a atenção que devemos dar a cada uma das pessoas deve ser o olhar do Senhor. Qual é o meu olhar? É de indiferença? É o olha que abandona a vida das pessoas? O meu olhar é o que destrói a natureza? É o olhar que exclui a vida? Falar do olhar, da solidariedade social, é nos questionar qual é o nosso olhar? Como nós olhamos a outra pessoa? O Texto-Base traz a imagem de Santa Dulce dos Pobres, uma mulher presente entre os pobres e sofredores. Uma testemunha irrefutável de Dom e Compromisso diante dos que sofrem. Somos chamados a ser o Bom Samaritano hoje. A sermos aqueles que acolhe o estrangeiro, o viajante, o desconhecido, o encarcerado, sentir compaixão e cuidar dele. O agente da Pastoral Carcerária contempla no irmão e na irmã o Cristo, o Jesus que sofre em cada pessoa presa. À luz da Palavra de Deus, não julga ninguém, acolhe, escuta, abraça, cuida e denuncia. Quando a pessoas está presa ela está cumprindo uma determinação judicial, mas a lei garante a ela todos os outros direitos constitucionais. E quando nós estamos lutando pelos direitos de uma pessoa presa, nós não estamos do lado de bandidos, não. Estamos do lado de um irmão e o que eu não quero pra mim eu não quero pra ninguém. E só há uma diferença entre eu e você e as pessoas que estão presas: eles se encontras atrás das grades e nós ainda não, pois na verdade a gente nem se conhece direito e não sabemos a reação que poderíamos ter diante de qualquer situação.

 

O Lutador: O que veria e diria o papa Francisco se visitasse uma prisão brasileira?

Rosilda: Certamente ele diria: porque eles e não eu? É um lugar de muita dor. Ninguém merece. As penitenciárias no Brasil estão virando verdadeiros armazéns humanos sem nenhuma inserção social. Nos presídios que visitamos, a superlotação é assustadora. Celas com mais de 60 pessoas, sem ventilação, comida de péssima qualidade num local que deveria abrigar 10 pessoas no máximo. Tantas mães afastadas de seus filhos e filhos sem o abraço de mãe. E, com certeza, ele choraria. Nós não questionamos Deus, mas, pedimos, continuamente que Ele possa nos apontar o que devemos fazer. Quando entramos num presídio a gente pergunta o que Jesus diria aqui? O que Ele faria? E choramos. Mas não nos calamos. Procuramos os responsáveis e questionamos, dialogamos, cobramos e lembramos a eles que todos aqui são irmãos, irmãs, e como tal devemos nos tratar. Por que há tanta indiferença ali? Por que é tão fácil julgar o crime do outro? Por que eu não julgo o meu próprio crime, o crime da indiferença? Quando uma pessoa não é atendida no SUS e vem a óbito, também é um assassinato, quando o governo nega a educação pública de qualidade, ele mata sonhos, isso também é um assassinato. Tenho certeza que o papa também sonha por um mundo sem cárceres. Essa é a nossa proposta!

 

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