Após seis anos de trabalho pastoral na periferia de Salvador, BA, o sacerdote francês
Pe. BERNARD DE VILLANFRAY reside há seis anos em Mendes, RJ,
onde é o responsável pelo Foyer de Charité Nossa Senhora da Guarda.
Ele nos fala sobre a realidade da família nas Américas
O Lutador: Existe um modelo de família no Brasil?
Pe. Bernard: O recenseamento realizado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostra que os milhões de domiciliados no Brasil apresentam modelos diferentes daquela família formada de um homem, uma mulher e seus filhos. De fato, registra-se um número crescente de famílias monoparentais, formadas essencialmente pela mulher e seus filhos; chegam a 12,2% em 2010, em número próximo a 7 milhões no interior das 50 milhões de famílias repertoriadas.
Ao fato preocupante de que, atualmente, grande número de jovens casais não querem ter filhos, deve-se ajuntar que muitos jovens, notadamente mulheres, privilegiam a formação e a carreira profissional em relação ao compromisso do casamento. No mesmo período dos últimos dez anos, registrou-se uma constante em relação aos casamentos apenas civis.
Em contraste, notamos leve redução dos matrimônios religiosos (43%) e o aumento das uniões livres na mesma proporção (36%). Assim, o Brasil apresenta mais de um terço de uniões livres ou consensuais sem casamento religioso ou civil. As pesquisas mostram que quase metade das uniões livres situa-se nas classes sociais pobres.
O Lutador: A família ainda é um valor entre nós?
Pe. Bernard: É preciso notar um fato significativo e importante, ou seja, que a família é positivamente considerada pela maioria da população e vista como um grande valor pelos jovens (99%). E 70% dos jovens desejam casar-se. Dom Petrini, Bispo de Camaçari, BA, e delegado junto à Comissão para a Família na CNBB, confirma para a realidade brasileira o seguinte texto do Documento de Aparecida, extraído do Instrumentum laboris para a III Assembleia geral extraordinária do Sínodos dos Bispos sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização:
“Face a situações relativamente difíceis, muitas pessoas, sobretudo jovens, sentem o valor de um vínculo estável e permanente, um verdadeiro desejo de casamento e de família, onde possam realizar um amor fiel e indissolúvel que oferece serenidade para um crescimento humano e espiritual. O desejo da família aparece, pois, como um verdadeiro sinal dos tempos que merece consideração do ponto de vista espiritual.”
Mesmo se a noção de família remete hoje, no contexto da transformação das relações humanas na sociedade, a novos modelos de vida familiar, a aspiração por uma relação estável no amor aparece como uma dimensão que atrai as pessoas.
O Lutador: É possível dialogar com essa nova realidade?
Pe. Bernard: É claro que a Igreja propõe uma antropologia cristã que ela extrai do mistério de Cristo como uma base sólida e permanente, conforme a realidade do homem e da mulher, tais como Deus os quis no começo. Esta visão do homem em Cristo, ensinada pela Igreja, não é de modo algum uma porta fechada ao homem moderno, cuja vida é marcada pela cultura individualista, hedonista e consumista, mas uma fonte de diálogo permanente e respeitoso de outras concepções da vida conjugal e familiar.
O Lutador: Qual deve ser, então, o papel da Igreja?
Pe. Bernard: Estes novos modelos de vida familiar atraem hoje a atenção da Igreja sul-americana após as conferências continentais de Santo Domingo [1979] e Aparecida [2007], convocando toda a Igreja a uma conversão pastoral (DA, 365) e a uma renovação missionária das comunidades, manifestando a Igreja “como Mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, escola permanente de comunhão missionária” (DA, 370). Trata-se de uma conversão pessoal e comunitária que se traduz em nova proximidade pastoral feita de acolhida missionária e de testemunho de misericórdia.
O Lutador: E como fica o trabalho de evangelização?
Pe. Bernard: Ficou claramente evidenciado que a família e a nova evangelização vão lado a lado. Para a Igreja, trata-se de testemunhar pela vida familiar e comunitária, e pela abertura aos outros na acolhida da diferença, do amor de Cristo que nos anima. Assim ela poderá fazer frente aos grandes desafios que hoje condicionam a família sul-americana, a saber: as condições de trabalho que ignoram a realidade familiar, o individualismo reinante, os valores errôneos exaltados pelos meios de comunicação (novelas), a fragmentação das relações humanas, a mentalidade mercantil nas relações e os outros fatores derivados da sociedade moderna, seu modo de pensar e seu estilo de vida.
Devemos recordar as palavras simples e tocantes do Papa Francisco, pronunciadas no Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, referindo-se ao lar de Santa Ana e São Joaquim: “Em sua casa, Maria veio ao mundo trazendo consigo este extraordinário mistério da Imaculada Conceição; em sua casa ela cresceu acompanhada por seu amor e sua fé; em sua casa ela aprendeu a escutar o Senhor e a seguir sua vontade. Santa Ana e São Joaquim fazem parte de uma longa cadeia que transmitiu a fé e o amor de Deus, no calor de uma família, até Maria, que acolheu em seu seio o Filho de Deus e o ofereceu ao mundo, ofereceu-o a nós. Vemos aí o valor precioso da família como vínculo privilegiado para transmitir a fé”.]
“Quando eu ajudo os pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, dizem que sou comunista”. Do tempo de Dom Helder para cá, o mundo piorou tanto que, quem sabe, mesmo essa exortação que trata mais do cuidado com os pobres e apenas alude às causas estruturais da pobreza, possa ser acusada de comunista.
Hoje fala-se mais do que escuta. É através da escuta que a gente consegue entender melhor a identidade do outro, para depois, acolhê-lo sem preconceitos geridos pelo clima dos relacionamentos. Às vezes as pessoas preferem muito mais viver isoladas e envolvidas com seus problemas pessoais. Agindo assim, elas se esquivam das responsabilidades da vida social e de ajuda aos outros.
“O aquecimento global não é uma falácia, não é uma invenção, mas é uma realidade comprovada, cientificamente comprovada. Nós tivemos a possibilidade de compreender que hoje nós temos não somente uma pauta de comunicação, mas para usar uma expressão apresentada aqui, uma comunicação necessária”
O Papa Leão XIV pretendeu, tão só, apontar-nos os bons caminhos de Jesus, pois o amor é o rosto da fé e a fé verdadeira só pode se expressar como caridade (nº 29); “só o amor é digno de fé”, nas palavras de um célebre teólogo. E o fez indicando o imperativo do amor que merece o nome cristão: “o amor para com os pobres”. Afinal, só o amor para com os pobres é digno de fé.