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09/08/2021 Mauro Passos - CEHILA Brasil Edição 3939 Pedro Casaldáliga – místico e profeta de luta contra a injustiça e exclusão
F/ Ameríndiaenlared
"Com ele, a palavra ganhou forma em poemas e vida em liberdade. Casaldáliga parece nos dizer, ainda hoje, que as utopias podem voltar, porque fazem parte da condição humana. A vida cristã não é um acumulado do ontem. É uma voz que nos chama de diferentes maneiras para “crer na justiça e na esperança."

...tu és a história que narraste
não o simples narrador.
(Carlos Drummond de Andrade)

 ...que se faça justiça a Pedro Casaldáliga pelo trabalho, lições e história que marcaram sua vida. Em vez de decifrar atos, deu-lhes maior intensidade; em vez de congelar a criatividade, cultivou-a com a leveza dos poetas; em vez de aprisionar a religião, permitiu-lhe a liberdade; em vez de despersonalizar a Deus, deu-lhe o rosto que Ele mesmo escolheu.

Como contar, em poucas páginas, a gesta de um profeta cuja causa deveria ser a marca de uma agenda comum a todos os cristãos? São tantos e tantos trabalhos, cada um com várias pistas e inspirações, que, no mais das vezes dialogam uns com os outros, num quase palimpsesto, o que torna a tarefa da escolha difícil. Obra e pessoa rimam em seu trabalho religioso, intelectual e social. Segundo Michel de Certeau: “A criação vem de mais longe que seus autores, supostos sujeitos, e ultrapassa suas obras” . Os atos e obras desse bispo compõem sua história, sua vida, sua causa, seu testemunho.

Quando chegou a São Félix do Araguaia, estado do Mato Grosso, em julho de 1968, o Pe. Pedro Casaldáliga e alguns membros da Congregação Claretiana começaram várias Campanhas Missionárias que desenvolviam trabalhos de saúde, higiene, alfabetização e educação popular. Foi um verdadeiro processo de humanização e, ainda, um espaço para a formação do cidadão livre e do sujeito político. Tarefa difícil num espaço com tantas desventuras e ausências, formado por pequenos agricultores, camponeses migrantes, sertanejos e indígenas, em extrema pobreza. A Prelazia de São Félix foi criada em 13 de maio de 1969, num período de apropriação de grandes extensões de terras por empresas e um processo de expulsão de posseiros e pequenos agricultores.

A trajetória de Casaldáliga articula dialeticamente vários elementos e relações latentes e difusas no campo social, político e religioso. O Nordeste do Mato Grosso é um mundo onde a luta pela vida e pela terra demandava respostas criativas e um profético compromisso cristão. A expansão capitalista nesta região foi também a expansão das contradições, injustiças e assassinatos. Ao se tornar bispo, em 1971, Dom Pedro Casaldáliga escreveu uma Carta Pastoral e afirma que ali estava “uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” . A questão da terra no Brasil tem um significado mais amplo do que um pedaço de chão. Há perguntas que atravessam essa questão – o que é a terra para o indígena? E para quem tira dela sua subsistência? E para quem só visa ao lucro? Para o cotidiano dos pequenos produtores, trata-se de uma questão de vida. Mais ainda, o direito de trabalhar para viver. Para isso, a adoção de medidas justas e civilizatórias é urgente

Desde o início, a Prelazia contou com vitórias, derrotas e empates pelos direitos sociais, políticos e humanos para a população sertaneja e indígena. A trilogia – “terra, vida e luta” – foi a bandeira e a razão do projeto pastoral e missionário. Tarefa nada fácil em tempos de tantas desventuras e exclusão. As pessoas pobres, objetos de exploração e escravidão, não contavam como elementos fundamentais do processo histórico. A colonização implementada pelo governo militar do Presidente Médici, em 1970: “Integrar para não entregar”, considerava o sertanejo e os indígenas um peso negativo para a economia. As marcas perversas e imorais dessa estrutura social e econômica eram tatuagens nos corpos e na vida desses povos. Por mais que a imagem dos indígenas e sertanejos tenha sido quebrada, não estava perdida, podia renascer; ser recuperada.

Frente aos desafios que procedem da realidade de pobreza, violência e exclusão era necessária uma organização eclesial à luz da fé cristã, socialmente situada, nas diversas regiões da Prelazia. Assim, Pedro Casaldáliga e a Equipe Pastoral traçaram as linhas mestras e os objetivos do trabalho – dialogar esses aspectos/problemas com a fé cristã. Definida a opção básica pelos pobres, tratava-se de solidarizar-se com eles, questionando, articulando conhecimento, projetos e formas de ação, em nível de organização popular – o Projeto Araguaia “Pão e Circo”, o jornal Alvorada, as Cartilhas Populares, os Mosaicos nas Igrejas, a Missa da Terra Sem Males, a Missa dos Quilombos, as Romarias, os Encontros Bíblicos, Litúrgicos e das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), entre outros. Dom Pedro soube respeitar os símbolos e as tradições religiosas dos povos indígenas, dos sertanejos e trabalhadores rurais. As CEBs foram a referência pastoral e o jeito de ser Igreja na Prelazia, considerando o ritmo de cada região e núcleo, seu envolvimento nas obras, atividades e lutas.

A atuação de Casaldáliga não se restringiu ao contexto político e social de São Félix do Araguaia. Seu discurso e sua prática eram pela superação da pobreza, pois a práxis do amor fraterno ultrapassa o nível particular para o geral e possibilita a formação de uma memória coletiva. Assumir o religioso, para este bispo era mover-se em ondas de criatividade, solidariedade e partilha. Assim, em 1972, foi um dos cofundadores do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), tendo como metas a defesa da terra, a preservação da cultura e o respeito à autodeterminação das nações indígenas e da CPT (Comissão Pastoral da Terra), em 1975, para ser um serviço à causa dos trabalhadores do campo e de sua organização.

A obra de Pedro Casaldáliga é uma grande obra universalizada pela qualidade e quantidade de utopia humana e cristã que recebeu. Ele ultrapassou o Decálogos da tradição judaica e fez morada nas Bem-aventuranças de Jesus de Nazaré para que a justiça se fizesse, e o bem perdurasse. O seu carisma profético teve uma palavra-chave – justiça. Foi cristão de uma maneira concreta e, a partir de uma reflexão solidária e crítica, abriu espaços para uma vida em comunidade, densa em experiências e fora dos tropos padronizados e hierarquizados da instituição religiosa. Com ele, a palavra ganhou forma em poemas e vida em liberdade. Casaldáliga parece nos dizer, ainda hoje, que as utopias podem voltar, porque fazem parte da condição humana. A vida cristã não é um acumulado do ontem. É uma voz que nos chama de diferentes maneiras para “crer na justiça e na esperança”.

Notas

1 ANDRADE. Carlos Drummond. A paixão medida. 2ª. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 89.
2 DE CERTEAU, Michel. La culture au pluriel. Paris: Éditioms du Seuil, 1993, p. 10.
3 CASADÁLIGA, Pedro. Carta pastoral:  Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971, p. 1.
4 A clássica divisão da história de Canudos – a terra, o homem a luta, na obra de CUNHA, Euclides da. Os sertões – campanha de Canudos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.

Prof. Dr. Mauro Passos. Presidente do CEHILA-Brasil (Centro de Estudos de História da Igreja/do Cristianismo na América Latina). Professor e Pesquisador do Centro de Estudos da Religião “Pierre Sanchis” do Departamento de Antropologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

 Fonte: Ameríndia

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